17 de jul de 2020

TRAVESSIAS E URGÊNCIAS - relato de experiências sobre processos artístico-pedagógicos

POR ISTÉFANI PONTES

Descentralização do acesso à Arte é o pensamento que guia as ações pedagógicas da Escola Livre de Artes Arena da Cultura. Sediada no Edifício Central, no coração de Belo Horizonte, e com mais de 20 anos de história e luta, o Arena (como carinhosamente chamamos) fortalece sua atuação principalmente nos Centros Culturais das 17 regionais, que se localizam nas zonas periféricas da cidade de Belo Horizonte, ou seja, fora do “círculo da Contorno”.

Historicamente, a cidade foi planejada para ser “vivida” dentro dos limites da Av. do Contorno e, mesmo depois de mais de 100 anos de existência e com os limites dessa avenida sendo expandidos diariamente, ainda assim percebemos que os cursos de artes, teatros, museus, casas de show e cinemas concentram-se, em sua grande maioria, na região centro e centro-sul da cidade. Acerca de três anos, sou professora de atuação e expressão vocal na área de Teatro da escola, que hoje conta com dez áreas de manifestações artísticas diversas. Além dos cursos de longa duração realizados no NUFAC (Núcleo de Formação e Criação Artística e Cultura) e nos centros culturais, o Arena passou a ofertar oficinas de curta duração. Tais oficinas, nomeadas “oficinas de sensibilização”, tinham como objetivo atender a um público específico do entorno dos centros culturais.

De todas as experiências incríveis que vivenciei enquanto docente, uma me marcou em especial. Em 2018, fui designada a ministrar um curso de Sensibilização em teatro no Centro Cultural Urucuia, que fica no bairro Pongelupe, na região do Barreiro.

O curso acontecia uma vez por semana, em agradáveis sábados à tarde, durante o primeiro semestre de 2018. Era uma turma bem diversa com quase 30 alunos, em sua maioria jovens e adultos moradores da região, que trabalhavam pela cidade ou que cursavam os primeiros anos de faculdade. Compunham o coletivo também alguns adolescentes entre 13 a 18 anos e três alunos da terceira idade que davam um show de despojamento e de disponibilidade. Uma energia pulsante!

Ao longo das aulas, eles se tornaram unidos e harmônicos para jogar e para dialogar, características necessárias ao fazer teatral. Assim, por esta particularidade e pelo espaço fantástico e acolhedor que o Centro Cultural possui, a turma solicitou, junto à escola, a continuidade do curso de sensibilização no semestre seguinte, o que foi aceito prontamente.

Continuamos, então, em processo, aprofundando o estudo teatral por meio de Jogos Teatrais e Jogos Improvisacionais, segundo Viola Spolin, bem como demos continuidade a uma investigação acerca da experimentação vocal em jogo que iniciei alguns anos atrás. Estudo este que marca a metodologia que escolhi desenvolver como projeto de mestrado e em um artigo que recentemente publiquei junto com o Prof. Dr. Ernani Maletta e que apresenta Francesca Della Monica como principal referência teórica.

Desde 2012, estudo e desenvolvo com meus alunos a pesquisa de Della Monica acerca das Dimensões Vocais e me pareceu bastante acertado aliar sua pesquisa a exercícios que estimulem as capacidades improvisacionais e coletivas dos alunos em situação de jogo, fortalecendo a ideia da Ação Vocal. São propostos exercícios que agem como disparadores e aguçadores do trabalho vocal, uma vez que, ao colocar o corpo “em função” do jogo, despertam-se possibilidades de uso da voz no espaço, como vocalizações, sonoridades e palavras (SPOLIN, 2005).

Intercalo esses jogos com os exercícios propostos por Della Monica em suas oficinas e laboratórios que, em sua maioria, são compostos pela emissão de vogais e fonemas, em progressões cromáticas de trechos das escalas diatônicas menores e maiores.

A emissão sonora vocal é associada a uma ação corporal de expansão, que traduz as diversas imagens mentais, suscitadas por Della Monica, relativas à espacialização da voz.

Não era minha intenção inicial elaborar qualquer trabalho a ser apresentado como resultado final de conclusão de curso. Particularmente, sou adepta a viver aquela experiência com eles e elas e levar o aprendizado para casa. No entanto, no dia 14/10/2018, entre os espaços do Centro Cultural Urucuia e as montagens do Parque Estadual do Rola Moça, a aluna Carol (nome alterado para preservar sua identidade) pediu a palavra durante a roda de conversa que faço nos primeiros minutos de aula.

Elas nos contou que, na semana anterior, no dia 07/10, dia da eleição do 1º primeiro turno para presidente do Brasil, enquanto se dirigia para o local de votação, na região do Barreiro próximo à casa de sua mãe, foi agredida fisicamente e humilhada verbalmente por jovens que faziam boca de urna e que distribuíam “santinhos” com a imagem de um político que estava se candidatando (e que viria a se tornar o nosso presidente alguns meses depois). Ela nos contou, com muito esforço, choro e a voz estremecida, detalhes dessa agressão e percebeu que um dos motivos para ter sido violentada - em um dia tão importante e com tantas pessoas nas ruas - era por seu posicionamento político e, principalmente, por ser mulher negra periférica.

Com muito cuidado, com respeito a sua história e com a sua autorização, transcrevo trechos de um relato que Carol me enviou em particular, no qual me contou quais foram suas motivações a compartilhar o acontecido com nossa turma:

Eu gostaria de começar esse relato dizendo que eu moro no Barreiro desce que eu nasci, 37 anos praticamente. Existe um sentimento, que é comum das pessoas mais antigas que moram na região, que é de pertencimento àquele lugar, e isso defini um pouco quem a gente é. Quando aconteceu aquela agressão, eu senti que eu perdi um pouco do direito de ser quem eu era. Não podia mais ser mulher, não podia mais ser negra, não podia mais ser moradora de uma região periférica. Me senti com medo, me senti insegura, me senti sozinha. A maioria das pessoas que eu contei sobre o que aconteceu, se interessavam mais em saber o que eu tinha feito para merece isso e o porque eu não agi da mesma forma, agredido os meus agressores. Com o tempo eu percebi que o dano psicológico daquela ação foi maior que o dano físico, a ponto de eu não consegui mais conversar com as pessoas sobre a situação que causou a agressão. Eu não tinha mais lugar de pertencimento (...). A motivação de me abrir com o grupo é que eu me sentia segura dentro do coletivo, depois do que ocorreu a oficina era um dos poucos lugares de segurança que eu tinha. Quando eu estava na oficina eu não pensava na agressão, era um lugar que eu não tinha medo de estar ali, nos erámos um grupo diverso, tanto de idade quando de religião, mas o grupo propôs dar voz aos oprimidos. E eu me encontrei nesse lugar. Eu encontrei todas as liberdades que eu perdi e o direito de ser quem eu era. No grupo, eles não se preocuparam em julgar o que aconteceu, mas sim em dizer “vamos conversar sobre isso, a gente precisa conversar sobre isso! Todo mundo tem o direito de ser quem quer ser”. [1]

A turma prontamente se colocou a disposição para acolhê-la e a lutar por sua voz e, em unanimidade, decidiram fazer uma ação no Centro Cultural Urucuia em repúdio ao que aconteceu. Entendemos que essa ação carregava consigo uma urgência, visto o período sensível que vivíamos: uma das eleições mais tensas que o país enfrentou, cercada de silenciamentos, ataques às liberdades individuais e desinformações de toda ordem. Então, marcamos a ação para o dia 27 de outubro, o sábado anterior ao 2º turno das eleições presidenciais. Com isso, teríamos apenas o restante da aula dia 14 e a aula do 21 para planejarmos toda a ação.

Pensamos em criar uma ação simples e objetiva, mas que marcasse o nosso pensamento e posicionamento. Conversamos muito naquele dia, falamos tudo aquilo que engasgava a todos e sobre a situação que estava posta. Colocamos a fala para fora, aos moldes de Lorde, A fala me recompensa, para além de quaisquer outras consequências” (2019, p.51). A respeito disso, Della Monica me vem a mente, quando sempre reitera nas oficinas e laboratórios que ministra: “A voz é quem você é, como você é, e como você se expressa no mundo; com seus defeitos e qualidades. Sua voz é você. A sua voz nos conta sobre você e o que ela representa...”[2]. Essa é uma das formas pelas quais Della Monica aborda a ideia da identidade vocal.

Percebemos que todos os alunos sofreram algum tipo de silenciamento ou violência durante o período das eleições. Diante disso, colhemos frases que os próprios alunos vivenciaram ou tiveram contato nas ruas e virtualmente. Junto a essas frases, criamos uma dramaturgia que misturava outras frases que foram ditas a civis por torturadores durante a Ditadura Militar de 64 no país. Elas foram propositalmente escolhidas a fim de que o espectador não soubesse diferenciar se era uma frase opressora atual ou de quase meio século atrás.

Na aula seguinte, trouxe algumas imagens que serviram de disparadores de criação para discutirmos quais seriam as circunstâncias de jogo pelas quais essas frases se revelariam em cena. Dentre as imagens, estavam obras e instalações de artistas plásticos e visuais, perfomers e soluções cênicas de diretores de teatro, e uma chamou a atenção da turma, em particular. Era a obra de Duchamp chamada Miles of String (milhas de fios), na qual ele produziu uma das instalações mais audaciosas do início do século XX em uma exposição de quadros.

O artista transpassou todo o espaço da galeria com fios brancos, que iam de um lado para o outro e de cima para baixo, dificultando a visão das obras que estavam expostas e criando uma outra percepção de espaço. Decidimos, então, criar um jogo a partir da imagem desse “labirinto” de fios: cada aluno amarrava uma das pontas de um fio de barbante ao redor de seu corpo e carregava consigo um dos relatos e a outra ponta do fio. Ele atravessava a sala com o fio dizendo seu relato como se confessasse algo ao público e, ao final do seu relato, entregava a ponta solta a alguma pessoa que estava assistindo.

Com olhar fixo no espectador, ele tentaria expressar um pedido silencioso de socorro ou de ajuda, na esperança de que a pessoa respondesse seu olhar, tomando alguma atitude. Após alguns instantes sustentando esse jogo de olhares, aparece a figura de duas pessoas com status[3] de opressor e marca o aluno com tinta vermelha em uma parte do corpo que o relato sugere e, por fim, cola um cartaz contendo símbolos de censura.

Compomos esse jogo no espaço. No dia 27, quando o público adentrou a sala de aula, em grande maioria moradores, familiares e frequentadores do centro cultural, os fios já estavam transpassados ao redor do espaço, incluindo também nesse labirinto todas as cadeiras destinadas ao público. Depois que todos se acomodaram, um aluno entra em cena com um jornal nas mãos e se senta em uma das extremidades do labirinto, onde conseguisse ser visto por todo o público. Abre um jornal para ler enquanto um por um dos alunos entra naquele espaço com seu relato, seu fio e seu jogo de olhar. A cada relato que é dito, o labirinto torna-se mais complexo, trazendo dificuldade na movimentação, no andar e na fala dos alunos ao mesmo tempo em que o aluno que lê o jornal rasga uma manchete. Ele faz a mesma ação repetidamente até o último relato, quando fecha o jornal todo recortado e entrega para o público.

Durante toda a apresentação, um aluno sentado ao fundo da sala toca notas de músicas censuradas na ditadura no violão.

Fotografias: Arquivo pessoal

Ao final, todos os alunos em cena dizem, repetidamente, "VOCÊS NÃO VÃO FAZER NADA?" em cânones mais ou menos intensos e com entonações diferentes. Silêncio. Propus que descobríssemos em cena como desmontar a imagem e puxar para uma conversa. Depois de outro longo silêncio incômodo, uma espectadora se levanta e aplaude com vigor e todos a acompanham. Desmontamos, agradecemos e iniciamos o diálogo com os frequentadores do centro cultura que, encabeçado por Carol, contou o que havia acontecido com ela na região e os motivos pelos quais queríamos trazer o debate para o bairro.

Foi importante essa conversa entre os alunos da turma de sensibilização em teatro - que se mostravam cada vez mais conscientes de seu lugar - com a sua comunidade.

Ao mesclar a noção de jogos teatrais de Viola Spolin e os pensamentos filosóficos de Della Monica em sala de aula como ferramenta do aprendizado de Teatro, possibilitou-se o reconhecimento e a noção de pertencimento daqueles alunos e daquelas alunas com sua comunidade, fortalecendo seus dizeres, suas urgências, suas vivências e os significados de suas ações. E como essas ações podem reverberar no seu entorno. Fomos convidados a reapresentar essa ação por mais duas vezes no mesmo ano, no Festival Descontorno Cultural 2018 e na Mostra Arena da Cultura - 20 anos.

A própria noção de liberdade, que compõe o nome da escola, vem acompanhada das noções de autonomia e protagonismo dos alunos, reconhecendo a criatividade e a originalidade como valores fundamentais em seu desenvolvimento. Acredito que um dos objetivos dessa oficina, que tem como proposta dar “um gostinho do que é teatro” no entorno dos centros culturais de Belo Horizonte, cumpre sua finalidade quando conseguimos trazer a ideia de que o teatro, para além da técnica, é um lugar de troca íntima, de escuta, de acolhimento, de respeito pelas histórias e, principalmente, de luta e cura coletiva. A arte e a cultura estão intrinsecamente ligadas à vida humana e fazem parte do exercício da subjetividade e do sensível e acredito que todas as pessoas são produtoras de cultura e experimentam a arte de alguma forma em suas vidas.

Fotografia: Arquivo pessoal


[1] Transcrição de um áudio de Whasapp.
 
[2] Anotações de Worshops que Della Monica conduziu no Brasil entre 2012 e 2015, intitulados: A dimensão espacial e gestual da voz – Módulos I e II, e Módulo Aprofundamento para Professores.
 
[3] A ideia de Status se dá em jogo conforme proposto pela metodologia de Viola Spolin e trabalhado anteriormente com os alunos.


REFERÊNCIAS

  • DELLA MONICA, Francesca; MALETTA, Ernani. Os espaços que promovem uma dramaturgia da ação vocal. In: VIS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB, Brasília, Universidade de Brasília, v.14, n. 1, p. 9-18, janeiro-junho de 2015.

  • LORDE, Audre. A transformação do silêncio em linguagem e em ação. In: Irmã Outsider, ensaios e conferências; tradução Stephanie Borges. – 1. ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

  • SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.


Istéfani Pontes é atriz, iluminadora, professora e pesquisadora teatral, possui como foco de pesquisa a Ação Vocal, investigando principalmente os processos de criação de espetáculos teatrais e em sua atuação como professora de Expressão Vocal. Atualmente, é professora de Expressão Vocal no Cefart/Palácio das Artes e na Escola Livre de Artes/Arena da Cultura, ambos Belo Horizonte/MG.

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