Por Heloisa Marina
Fui fazer teatro para poder gritar…
as vezes, eu acho que é isso mesmo. Quiçá seja clichê, clichê demais, dizer disso. De que atrizes e atores são esses seres cheios de fúria, de terrenos internos que insistem em transbordar.
Grito. Grito mesmo.
E há ainda outra série de provocações - fazer pulsar estados e emoções que não são nossas, mas a gente fingi que são porque bem no fundo até que nos pertencem de fato. Porque em cena, no palco, no palco real, a gente vive um tanto de sentir. Mas um tanto!! E depois a gente inventa que aquilo tudo foi feito, foi ensaiado. Só que a parte que eu olho no teu olho não foi. Tá aí: essa coisa do olho no olho do desconhecido, do espectador que eu nunca vi, a parcela de improviso, de imprecisão, de não saber o que: ah, como eu gosto disso! Tá aí: essa coisa de se entender com a parceira de cena só em um olhar e mudar nesse instante-respiro o fluxo do roteiro.
Eu, pelo menos até onde cheguei a me compreender, fui fazer teatro para poder gritar e também olhar, e mudar tudo no improviso, a pra poder sentir um monte de coisa inventada - mas que é real - na frente de gente que eu nem sei, ou que conheço demais.
E também pra sentir aquela luz forte no rosto que te cega e que transforma em magia cênica nossos devaneios. Não. Nossas necessidades de existência.
Mas eu gostava tanto disso, dos olhares, da parcela de incerteza e do transbordamento de emoções fabricadas realizado em frente de outras e outros de forma enérgica e extrapolada, que fui pra rua. Gritar na rua, chorar, sorrir ou dizer baixinho poemas na rua. E tinham aquelas pessoas que passavam e nos cumprimentavam: “bando de vagabundas, vão trabalhar”, e tinham as que paravam e admiravam. E a gente achando tudo torto.
Mas, no final das contas, que espécie de ofício é esse: o de dizer uma história no meio da rua, olhando nos olhos de alguém que passa e já se foi?
Eu me injuriando com os xingamentos e hoje penso, mas também, quem nesse mundo pode se permitir ter como trabalho a prática de um fingimento honesto das emoções? Honesto porque acordado entre mim e os que param, pararam, paravam pra nos ver.
Agora não!
Agora o computador frio me olha, sem olhos. Só telas. Eu respeito o momento e as necessidades. Mas meu grito ficou vazio de ouvidos reais, e minhas emoções de vida tiveram que ser sóbrias, consentidas e solitárias. Eu gostava de transformá-las em outras emoções (inventadas para me afastar de mim).
É que eu fui ser atriz para gritar na frente dos outros e me sentir bem em ser extravagante, porque no teatro pode. Não sei por que eu precisava do testemunho. Mas agora vejo a tela, tento, e é bom também. Mas o grito no escritório não ganha corpo, ou não ganha a forma sonora que teria se.
O escritório sou eu, em parte (a produção, não esqueço), e está bem! Eu repito pra mim todos os dias que está bem, mas a verdade? Não vou dizer aqui por que falta espaço para os sentimentos fingidos que realmente doem de sentir. Ou, queria dizer apenas que gosto do escritório-produção, do escritório-gestão, do escritório-pesquisa. Eu gosto, mas ele é pouco para mim. E que sinto, percebo, me dou conta da potência de um grito cênico - realmente fingindo, fingidamente real - no meio na rua, ou na vibração das tábuas de madeira do palco que hoje falta. Que em 2020 todo falta.
É que eu... eu fui fazer teatro para gritar e o grito no apartamento parece contido, reprimido, porque no teatro, sim, ali sim se pode, ali sim o grito fingido ganha a verdade da presença comungada.
Verdade plena porque partilhada em loco. É que fui fazer teatro para poder gritar na sua frente, na sua cara. Um grito presente, por isso real, talvez único tipo de verdade possível em tempos de mentiras virtuais.
Um grito.
Grito.
Grito mesmo.
Heloisa Marina é atriz, pesquisadora, produtora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais, na Escola de Belas Artes, Departamento de Artes Cênicas, atuando no campo de gestão, produção, diversidade e políticas culturais. Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC e Universidad Veracruzana de Xalapa - México (2013-2017), tendo investigado as relações entre produção, gestão e criação estética no âmbito do teatro contemporâneo latino-americano. A dupla condição de artista e produtora marca sua trajetória profissional: fundadora de dois grupos, a Cia Entrecontos, (vinculada de 2006 a 2019) e a Dearaquecia (2007 a 2015). Nestes, no âmbito das funções atriz-produtora, foi gestora financeira, representante comercial (participando de feiras de negócios no Brasil, Argentina e Chile) e redatora de projetos. Como atriz se apresentou em diversos espetáculos teatrais, em festivais e encontros do setor artístico no Brasil e em países como Argentina, Chile, Peru, México e Espanha. Destaque para o FIT-BH, Festival Latino Americano de Teatro (Santiago do Chile), Festival de Teatro de Girona (Espanha), Prêmio Funarte Nelson Rodrigues e os circuitos EmCenaCatarina e Baú de Histórias (SESC-SC). Sua atuação como produtora se fundamenta na criação de redes a partir da premissa de trabalho colaborativo e participativo, norteando suas parcerias, como a rede Corredor Latino-Americano de Teatro (que atua em diversos países do continente). http://heloisamarina.wix.com/atrizeprodutora
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