Por Lucas Fabrício
A horizontalidade está em nossos pilares. O Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias – CICALT nasceu dos princípios e fundamentos que orientaram o Programa Valores de Minas, que sempre prezou por práticas e metodologias que promovessem o protagonismo juvenil, colocando seus alunos e alunas na construção dos processos pedagógicos e de gestão da escola. Da mesma forma, o Valores de Minas sempre foi uma escola atenta ao acolhimento dos temas e dos discursos trazidos pelos/as jovens – em sua maioria oriundes das camadas populares e de regiões periféricas da cidade.
Em outubro de 2019, iniciamos o módulo 3 do Curso Técnico de Teatro do CICALT – última etapa da formação ofertada. Por se tratar da primeira turma a se formar em um curso e em uma escola em processo de consolidação artístico-pedagógica, não tínhamos, de antemão, nenhum formato ou tradição à qual se firmar: para além do plano de curso, tudo ainda estava por fazer. Eu havia acabado de assumir as disciplinas “Prática de Criação Cênica” e “Produção Cultural”, espinhas dorsais para elaboração dos processos de conclusão de curso dos alunos e das alunas. A escolha por criar um espetáculo teatral de formatura foi uma decisão coletiva com a turma e com a equipe docente, em busca de uma formação significativa para todos e todas ali.
Todo processo de criação e, igualmente, as práticas pedagógicas em arte trazem em si pressupostos éticos e estéticos que os conduzem e que dizem sobre os/as criadores/as, sobre os seus valores e formas de representar o mundo. Englobam também as diretrizes escolares e os valores expressos no Plano Político Pedagógico que regem a instituição.
Além disso, para definir os contornos de um processo coletivo de criação, foi importante focar o olhar na turma, reconhecer aqueles alunos e aquelas alunas, seus dizeres e suas urgências. E ainda: se estamos de fato empreendidos na busca por uma educação decolonial e antirracista, era importante reconhecer, como bem nos atenta Grada Kilomba (2019; p. 50) que “o centro acadêmico não é um local neutro. Ele é um espaço branco onde o privilégio de fala tem sido negado para as pessoas negras.” Nesse sentido, era também imperativo propor um processo artístico e pedagógico que revertesse a lógica de hierarquização dos saberes e que colocasse em ênfase pensamentos e práticas decoloniais e antirracistas.
Sendo assim, quais são os pilares metodológicos de um processo de criação em teatro que considere todas essas questões?
Em uma das nossas primeiras aulas, perguntei à turma sobre o que gostariam de criar. Naquela etapa, o objetivo era construir coletivamente um projeto de encenação que nos indicasse caminhos éticos e estéticos. Construímos uma grande cartografia com os desejos de cada um/a ali: “autobiografia”, “o que a gente passou para estar aqui...”, “identidade marginal do curso”, “pequenas narrativas”, “sair da zona de conforto”, “pequenas particularidades do cotidiano”... Essas foram apenas algumas das frases, dos desejos e dos apontamentos manifestados naquele primeiro momento – possíveis matérias criativas sob as quais poderíamos nos debruçar.
Em rodas de conversa com o grupo, reconhecemos que, para os alunos e alunas terem chegado ao módulo 3, era um ato de resistência. No início do curso, a turma tinha cerca de 50 estudantes matriculados. Naquela época, outubro de 2018, o curso técnico foi inaugurado quando ainda existiam os cursos livres do Programa Valores de Minas que ofereciam vale transporte. Muitos estudantes dos cursos livres ingressaram também no curso técnico e utilizavam o mesmo benefício do transporte para frequentar os dois cursos. Em 2019, o corte do vale transporte resultou na evasão de muitos/as estudantes, tanto dos cursos livres, quanto dos cursos técnicos e vimos, pouco a pouco, o grupo diminuir.
Chegamos ao módulo 3 com 15 estudantes e era latente o desejo de falar sobre toda essa trajetória, abordar as ausências e as dificuldades socioeconômicas enfrentadas para frequentar o curso.
Discussão que precisa chegar também a outros espaços: como garantir o acesso de todos e todas à educação técnica em arte? Quem são os estudantes que hoje conseguem frequentar o curso?
Para mim, enquanto professor e artista, tem sido fundamental racializar minha prática pedagógica e, antes de tudo, reconhecer que minha formação acadêmica se deu quase integralmente em um território branco. A busca por uma educação antirracista requereu uma revisão de minhas próprias referências conceituais, estéticas e metodológicas.
Ora, ainda por cima estamos falando de teatro, o que significa que parte do saber branco adquirido em minha formação está moldado em meu próprio corpo, na minha corporeidade e na forma como performo a docência. O processo de decolonização dos saberes parece-me que não pode ser separado da racialização de nossas identidades e construções históricas, e, nesse sentido, foi importante questionar as minhas escolhas a cada planejamento de aulas.
Nesse caminho, e a partir também dos apontamentos criativos da turma, elegi pilares teóricos para fundamentar nossas discussões, priorizando autoras negras contemporâneas. Parecia-me importante compreender o modo como construímos nossos discursos cênicos e quais destes discursos são legitimados socialmente e por quais razões. Encontramos no texto “A transformação do silêncio em linguagem e ação”, da Audre Lorde, importantes reflexões sobre a necessidade de verbalizar nossos silêncios sob uma perspectiva racial e política:
Passei a acreditar, com uma convicção cada vez maior, que o que me é mais importante deve ser dito, verbalizado e compartilhado, mesmo que eu corra o risco de ser magoada ou incompreendida. A fala me recompensa, para além de quaisquer outras consequências. Estou aqui de pé como uma poeta lésbica negra, e o significado de tudo isso se reflete no fato de que ainda estou viva, e poderia não estar (2019; p. 51).
A leitura desse texto nos levou a um experimento performático a partir da materialidade da palavra escrita como um disparador de ações e estruturas cenográficas. Espalhamos pedaços de giz pelo espaço de trabalho e, no centro, havia a pergunta “qual o seu silêncio?”. Durante cerca de 1 hora, permanecemos nos comunicando apenas pela escrita, preenchendo o espaço com textos, citações, pensamentos, desenhos e ações. Ao final do experimento, produzimos fotografias que foram armazenadas e se tornaram um interessante material dramatúrgico.
Estudamos também alguns textos da Grada Kilomba, que refletem sobre o silenciamento imposto às populações negras desde a colonização. Partindo de fotografias de máscaras usadas na época da escravidão para cobrir a boca dos sujeitos escravizados, Grada Kilomba analisa a reverberação deste silenciamento desde a escravidão até as práticas sociais de racismo contemporâneo:
A máscara, portanto, levanta muitas questões: por que deve a boca do sujeito negro ser amarrada? Por que ela ou ele tem de ficar calada/o? O que poderia o sujeito negro dizer se ela ou ele não tivesse sua boca tapada? E o que o sujeito branco teria de ouvir? Existe um medo apreensivo de que, se o sujeito colonial falar, a/o colonizadora/or terá de ouvir. Seria forçada/o a entrar em uma confrontação desconfortável com as verdades da/o “Outra/o”. Verdades que têm sido negadas, reprimidas, mantidas e guardadas como segredos (KILOMBA, 2019; p. 41 – GRIFOS DA AUTORA).
Tais discussões nos levaram a questionar, hoje, quais discursos sociais ainda são silenciados e quais modos contemporâneos de produzir esse silenciamento – inclusive nas práticas teatrais e pedagógicas.
Além dessas autoras, nos aproximamos também de Jota Mombaça, através do texto “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!”, no qual compreendemos a lógica colonial que sustenta ficções de poder, que, por sua vez, legitimam uma série de genocídios e violências. Reverter essa lógica, ou, “redistribuir a violência” é “um gesto de confronto, mas também de autocuidado (2016; p.10)”. Se com Audre Lorde e Grada Kilomba investigamos o silêncio, com Jota Mombaça nos interessava encontrar modos de falar, inclusive violentos.
As discussões realizadas foram transformadas em experimentos cênicos e performativos, buscando a revelação de discursos, o diálogo com as histórias de vida dos alunos e das alunas e investigando formas de transpor tudo isso à cena. Era importante compreender que construir um processo criativo a partir de histórias de vida (ou escrevivências, nas palavras de Conceição Evaristo) pode ser também um ato político na busca por uma transformação social transversal à vivência daqueles alunos e daquelas alunas.
Mas o mais importante para todas nós é a necessidade de ensinarmos a partir da vivência, de falarmos as verdades nas quais acreditamos e as quais conhecemos, para além daquilo que compreendemos. Porque somente assim podemos sobreviver, participando de um processo de vida criativo e contínuo que é o crescimento (LORDE, 2019; p. 54).
Se, neste momento, temos a oportunidade de afirmar pressupostos artístico-pedagógicos em uma escola recém-criada, um desejo é que ela permaneça sempre atenta aos dizeres, às vivências e aos significados de seus alunos e alunas. Só assim me parece possível a insurgência de propostas e modelos educacionais conectados às transformações sociais necessárias e imperativas neste nosso tempo.
Todo o material cênico desenvolvido nos gerou uma cartografia de criação. Em um estudo dramatúrgico, analisamos o acúmulo de cenas, experimentos performáticos e fragmentos de textos, buscando pontos de interseção e diálogos entre eles.
“Sobre o que estamos falando?” foi a pergunta que norteou nossas escolhas éticas e estéticas.
Somaram-se, também, exercícios criativos realizados em outras disciplinas da grade curricular do módulo 3, todas trabalhando interdisciplinarmente neste processo: Laboratório de Práticas Integradas, Processos Dramatúrgicos, Estudos Literários III, Contexto Sociais Aplicados à Cena e Produção Cultural e Escrita de Projetos.
Esse processo durou entre os meses de novembro e dezembro de 2019 e fevereiro de 2020. Adentramos, em março, com um projeto de encenação construído coletivamente, que, na etapa seguinte, deveria ser materializado. “5 manifestos” foi o nome provisoriamente dado a esse primeiro esboço dramatúrgico, uma proposta de espetáculo dividido em 5 capítulos: barricada, denúncia, sonho, celebração e fim.
Em função da pandemia da Covid-19, nossas aulas foram interrompidas e nosso processo de criação pausado. É grande a angústia neste momento, frente à impossibilidade de seguir nossas pulsões criativas, mas é importante reconhecer que o processo de criação, do modo como o concebemos, não passará ileso a este momento de isolamento social e, certamente, iremos absorver tudo que tem nos atravessado nestes dias: a criação é um processo vivo. É importante, agora, viver a pausa, o momento é de alerta e de cuidado. Termino essa narrativa na esperança de que, sim, seguiremos e que em breve nossos discursos ganharão corpo e nossos silêncios serão ouvidos.
“Isso aqui é uma barricada!” – Jota Mombaça (2016).
Referências
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano; tradução Jess Oliveira. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
LORDE, Audre. A transformação do silêncio em linguagem e em ação. In: Irmã Outsider, ensaios e conferências; tradução Stephanie Borges. – 1. ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência! Oficina de Imaginação Política, 2016. Disponível em: < https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi> Acesso em: 16/04/2020.
Lucas Fabrício é ator, diretor e professor de teatro. Licenciado em Teatro pela UFMG (2015) e formado no curso técnico do Teatro Universitário da UFMG (2012). Atualmente é professor no Programa Ser Parte e no Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias – CICALT da Secretaria de Educação de MG.
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