Por André Sousa
A formação em dança que vivenciei – em cursos livres, profissionalizantes e no ensino superior – foi orientada pela ausência de referenciais étnicos e culturais brasileiros;as estéticas elencadas como objetos de conhecimentos eram – predominantemente – europeias e estadunidenses. A frequente negação das contribuições civilizatórias indígenas, africanas e afro-brasileiras na conformação da identidade e da corporeidade brasileira dançadas ainda gera lacunas nos currículos de formação em artes cênicas, restringindo, assim, um maior léxico para os artistas e docentes formados como profissionais de artes cênicas nos palcos e/ou salas de aula. Quero compartilhar um pouco das reflexões que tenho feito sobre possíveis abordagens pedagógicas para uma formação em artes cênicas mais plural e diversa, a partir das experiências acumuladas na graduação em Licenciatura em Dança (EBA-UFMG) e como docente do Programa Valores de Minas (2017 e 2019) e no curso Técnico em Dança do CICALT[1] (2019 e 2020).
Em meu Trabalho de Conclusão de Curso Insubmissão pelas frestas: agência de estudantes negras, ação artística/docente de dança, antirracismo e interculturalidade[2](2019), aponto alguns aspectos de negação e ausências dos referenciais negros na dança enquanto pedagogias para formar artistas-professores de dança. Além de levantar tais denúncias, o trabalho demonstra estratégias e possibilidades de mudança desse cenário de invisibilização por meio da interculturalidade e de uma educação antirracista. Por isso, para os fins desse texto, irei explanar sobre a interculturalidade, compartilhar alguns pontos vista da minha experiência e apontar aspectos importantes da interculturalidade para o ensino e formação em artes cênicas.
Figura 1: Performance-apresentação Insubmissão pelas frestas (2019)
Acervo Pessoal. Foto: Isabela Cesário
Interculturalidade em foco
A interculturalidade compõe um quadro de diferentes pensamentos e abordagens sobre as sociedades contemporâneas na perspectiva do multiculturalismo; são linhas de pensamento que leem as diferenças sociais e tentam compreendê-las no viés cultural.
A cultura pode ser entendida como a identidade de um povo; o sentimento de pertença de determinados grupo por meio de um conjunto de signos, significantes e significados construídos historicamente. Temos ciência de que os estados-nação atuais são constituídos por uma diversidade de culturas, mas qual cultura é recorrentemente ensinada e perpetuada como denominador comum dessa sociedade?É sabido que as experiências e modelos culturais e artísticos da Europa continuam sendo a baliza de legitimação de humanidade, de desenvolvimento e de estética;os estudos do Multiculturalismo emergem, portanto, como uma vertente que pensa as sociedades contemporâneas constituídas por diferentes culturas.
O Multiculturalismo surge após a II Guerra Mundial, buscando construir mais harmonia entre os povos da terra sem estigmatizar pessoas e grupos por causa de suas origens, raça, cor, sexo, etc. Há uma busca para demonstrar que todas as sociedades são constituídas por diferentes grupos culturais, com diferentes modos de ver o mundo, outros hábitos, outras tradições e outras crenças. Segundo Vera Maria Candau (2012), podemos distinguir os estudos multiculturais em pelo menos três correntes: assimilacionista, diferencialista e interativo (intercultural).
A corrente assimilacionista reconhece que a sociedade é múltipla culturalmente, porém os grupos minoritários (no sentido político) devem assimilar as práticas da cultura majoritária. A corrente diferencialista reconhece a diversidade, porém não acredita na convivência harmônica entre os grupos culturais, pois a cultura hegemônica acabara por apagar as demais culturas; os grupos não-hegemônicos propõem o fortalecimento de suas identidades, construindo espaços de convivência e produção de conhecimento exclusivos para essa população (as universidades para pessoas negras nos Estados Unidos são um bom exemplo dessa abordagem multicultural). Por fim, a corrente interativa ou intercultural se propõe a interação das culturas, revendo as histórias de expropriação e violência, de modo a não reconstituir hierarquias entre as culturas. Essa corrente faz críticas a todo modelo que faz a manutenção de uma dominação de uma cultura sobre outra; a interculturalidade dá importância a todos os grupos culturais sem perder de vista as urgências de rever o passado de violências e de exclusão de alguns grupos sociais sobre outros. Nesse sentido, a interculturalidade se afirma na potencialidade de trocas culturais, defendendo que nenhuma sociedade é herdeira de uma cultura única, mas nutrida por diversas influências que enriquecem a constituição social daquela localidade.
Da experiência à emergência de abordagens pedagógicas possíveis
Inquieto com as ausências de referenciais negros e com as perspectivas racistas que a formação em dança me trouxeram, focalizando somente na experiência europeia e nos estudos do corpo e das estéticas de/para dança[AT1] , senti a necessidade de ampliar meus estudos para reverter esse quadro. Tal negação das contribuições artísticas e pedagógicas de pioneiras e grupos de dança brasileiras “afro-orientada” (SILVA, 2017)me mobilizou a denunciar e a buscar caminhos possíveis para a experiência formativa em dança, seja ela para cursos livres, técnicos ou superior.
Nas experiências que tive como artista-docente no Programa Valores de Minas e CICALT, pude compreender que as propostas educativas ali estavam orientadas para uma “negociação cultural” (CANDAU, 2010) – um eixo importante da interculturalidade – no qual a proposta de formação está ancorada na/para diversidade, seja ela da negritude, do gênero, da sexualidade, das afetividades, das expressões de gênero, de classe, dentre outras. Para tal, as narrativas dos participantes sobre suas experiências raciais, periféricas, de gênero, sexualidades, afetividades, etc. são tomadas como ponto de partida para pensar, refletir, fruir e fazer arte. Portanto, na negociação cultural – sobretudo em um espaço de educação – é preciso (i) evidenciar os aportes históricos e sociais de cada conteúdos por meio de uma crítica ao pensamento ocidental centralizada na experiência europeia como modelo civilizatório para o mundo; e (ii) conceber a escola como espaço de crítica e de produção cultural, pois, nesses espaços, habita uma diversidade de experiências culturais que estão em constante atualizações (SOUSA, 2019, p.38).
Figura 2: Performance-apresentação Insubmissão pelas frestas (2019)
Acervo Pessoal. Foto: Isabela Cesário
Nesse sentido, esses dois aspectos para o ensino e formação em artes cênicas revelam-se como possibilidade de rever as perspectivas tradicionais de ensino-aprendizagem em dança e teatro, elegendo uma maior diversidade de referenciais do fazer artístico-pedagógico. Assim, as trajetórias e experiências os estudantes tornam-se um dos substratos imprescindíveis para uma educação intercultural, pois eles/elas são compreendidos(as) como fruto da cultura e “sujeitos sociais concretos, com saberes, outra forma de construir o conhecimento acadêmico e com outra trajetória de vida” (GOMES, 2017, p.114). Isto é, seus corpos e trajetórias anteriores à formação da escola têm potencial para denunciar as negligências epistemológicas sobre os negros e negras, indígenas, das mulheres, sobre travestis e transexuais, etc., reivindicando o abandono de abordagens racistas, eurocêntricas, patriarcais e machistas nas práticas educativas em artes cênicas. Mais do que isso, exigem práticas educativas antirracistas, anticapitalistas, antimachista e antipatriarcal.
Nesse sentido, a interculturalidade – no campo da educação – concebe os espaços e instituições de educação como locus de projeção de uma nova sociedade e produção de cultura, seja ela emancipadora-progressista (ao optar pela negociação cultural) ou opressora-conservadora (negligenciando as diversidades).
Particularmente, anseio que os espaços de formação em artes cênicas escolham por uma educação progressista, dialógica e emancipatória, numa perspectiva historio-critica da sociedade e problematizadora (FREIRE, 2017), observando na interculturalidade caminhos possíveis para um reconhecimento e valorização das culturas subalternizadas.
Tais desafios – de uma educação para a diversidade, com equidade – estão postos para as atuais e futuras gerações de artistas e docentes das artes cênicas, assim como para os estudantes, pois é fundamental que professores e estudantes se abram para as mudanças necessárias de nossas relações sociais, culturais e artísticas, tendo em vista que os movimentos sociais têm, cada vez mais, pressionado as instituições de ensino. A mudança é inevitável. Precisamos reconhecer e valorizar as narrativas que virão daqueles e daquelas que foram silenciados outrora e que agora serão – também – protagonistas da construção e manutenção das poéticas e estéticas das artes cênicas brasileiras:os temas serão outros,outras serão as vozes que contam e conduzem as histórias e formações de dança e teatro, outros serão os corpos e os movimentos que darão um novo sentido e sensibilização na apreciação e fruição nas artes cênicas;o caminho mais diverso já está traçado para educar uma outra sociedade para um futuro cada vez mais democrático e plural.
Figura 3: Performance-apresentação Insubmissão pelas frestas (2019)
Acervo Pessoal. Foto: Isabela Cesário
[1] Centro Interescolar de Cultura, Artes Linguagens e Tecnologias: escola de ensino profissional e técnico em Artes da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais.
[2] Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1dWBGa1KYMZHZWfkIiJ6PciicdsZFL4xW/view?usp=sharing
Referências
CANDAU, Vera Maria Ferrão. Diferenças culturais, interculturalidade e educação em direitos humanos. Educ. Soc., Campinas , v. 33, n. 118, p. 235-250, Mar. 2012. Availablefrom<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302012000100015&lng=en&nrm=iso>. accesson 09 July 2020. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000100015.
CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: desafios para a pratica pedagógica. In: MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; CANDAU, Vera Maria. (Ogr.) Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 64 ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017
GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Saberes construídos na luta por emancipação. Petrópolis, RJ: vozes, 2017.
SILVA, Luciane da. Corpo em diáspora: colonialidade, pedagogia de dança e técnica GermaineAcogny. 2017. 1 recurso online (281 p.). Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/331753>. Acesso em: 3 set. 2018.
SOUSA, Andre Luiz de; MACEDO, Juliana Gouthier; CAVALCANTI, Raquel Pires. Insubmissão pelas frestas: agência de estudantes negras, ação artística/docente de dança, antirracismo e interculturalidade. 2019. 127 p.
André Sousa, graduado em Licenciatura em Dança, pela Escola de Belas Artes (UFMG) e Graduação-Sanduíche em Ciências da Educação, pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, por meio do Programa Abdias Nascimento (CAPES). Artista-professor-pesquisador de Dança em espaços de educação formal e não-formal, dentre eles o Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias (2019-2020) e o Programa Valores de Minas (2017 e 2019). Integrante-idealizador do Coletivo EnegreSer que desenvolve ações artístico-pedagógicas da educação para relações étnico-raciais na dança. Tem desenvolvido estudos e pesquisa no campo artístico-educacional, analisando os aspectos culturais numa perspectiva de descolonização do currículo e interculturalidade.
ความคิดเห็น