Por Daniela Lima
Palavra é ação – esse é o título do capítulo inicial de “A palavra na arte do ator”, livro escrito pela atriz, diretora e pedagoga teatral russa Maria Ôssipovna Knebel (1898-1985), importante continuadora do desenvolvimento do sistema de Stanislávski ao longo da segunda metade do século XX. Sob influência dos ensinamentos de seus professores Mikhail Tchekhov, Konstantín Stanislávski e Nemirôvitch-Dântchenko, Maria Knebel desenvolveu pesquisas com ênfase no trabalho de ator/atriz com a palavra, na busca pela ação verbal autêntica em cena. Partindo dos estudos que realizo sobre essa autora e de experiências realizadas em grupo de pesquisa no campo da fala cênica, apresentarei um breve relato acerca das possibilidades de estudo da ação do ator/atriz, que em contexto de pandemia e isolamento social, me parece poder encontrar na palavra “tanto o princípio quanto o ápice de sua criação” (DÂNTCHENKO citado por KNEBEL, 2016, p. 29).
Um dos fundamentos do sistema de atuação desenvolvido por Stanislávski consiste no reconhecimento da ação como elemento basilar da arte atoral.
O principal conceito e elemento chave desse sistema, a ação física, compreende aquilo que o ator e a atriz fazem com o corpo e/ou com a fala em cena, colocando-se em reação e em relação a algo ou alguém, nas circunstâncias da peça.
Vale lembrar que a separação proposta entre corpo e voz é puramente didática, no intuito de reiterar a dimensão ativa da palavra cênica.
Como parte da minha pesquisa de mestrado, me proponho a investigar, de maneira teórico-prática, as especificidades e qualidades dessa ação no trabalho atoral, conforme os princípios propostos por Konstantín Stanislávski. Todavia, no atual contexto de pandemia e isolamento social, tornou-se inviável realizar esse estudo na sala de ensaio, lugar em que podemos investigar a ação por meio da relação presencial com o outro e com o espaço. Como, então, dar sequência à dimensão prática dessa investigação? Seria possível adaptar os estudos sobre a ação física em formato online e virtual? Esse tipo de questionamento é agora recorrente aos que se ocupam com o fazer teatral que, por ser a arte da presença e do encontro, nos desafia a pensar em estratégias momentâneas de adaptação.
Enquanto eu vivia esse momento de impasse, o professor do curso de graduação em Teatro da UFMG, Luiz Otávio Carvalho, me fez um convite para integrar, junto a outras pessoas também convidadas, um grupo de estudos sobre a fala cênica, no qual nos reunimos semanalmente em plataforma virtual. O professor nos chamou a atenção para o fato de que, se por um lado, o isolamento social inviabiliza a criação atoral junto aos diversos elementos que compõem a cena teatral, por outro, nos aproxima das potencialidades da ação verbal –no que concerne ao trabalho criativo do ator/atriz sobre a palavra cênica. Partindo, então, de nossas pesquisas sobre o sistema de Stanislávski e da compreensão de que “palavra é ação”,iniciamos os nossos estudos sobre a ação física vocal. Como material dramatúrgico de base para essa investigação escolhemos a peça “O beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues. Como percurso metodológico para o estudo dessa dramaturgia, recorremos à análise ativa, método de trabalho sobre a peça e o papel desenvolvido por Stanislávski nos anos finais de sua vida e pesquisa artística e, posteriormente, sintetizado por Maria Knebel na obra “Sobre a análise ativa da peça e do papel” (2016).
Dentre os aspectos estruturantes de uma ação física, destacamos, conforme observado por Luiz Otávio Carvalho, que essa ação deve se configurar como uma reação inserida e justificada pelas circunstâncias propostas da peça e motivada por objetivos específicos. A fala cênica, portanto, deve ser balizada pelos mesmos parâmetros de composição.Iniciamos nossos experimentos analisando as circunstâncias propostas de “O beijo no asfalto”, para, então, começarmos a improvisar, tendo a palavra como ferramenta para a ação. Não vou me ater aqui em detalhes sobre os procedimentos pedagógicos do sistema que utilizamos como instrumentos de análise do texto, tais como circunstâncias propostas, supertarefa, acontecimentos, tarefas e ação transversal. O que é válido ressaltar é que esse período de exploração e desmontagem da estrutura da peça em acontecimentos e tarefas foi imprescindível para que pudéssemos iniciar nossas experiências práticas com a fala cênica, em busca por ações verbais autênticas, que se configurassem como reações circunstanciadas pelo contexto da peça, direcionadas ao alcance dos objetivos de cada personagem.
Uma grande contribuição oriunda desse processo, antes mesmo de chegarmos às questões da ação vocal, consiste na descoberta de procedimentos pedagógicos, pertencentes ao método de análise ativa, capazes de nos auxiliar no momento de estudo do texto dramatúrgico. Geralmente, em encontros e aulas presenciais na faculdade, essa análise do material textual não acontecia de modo tão detalhado e aprofundado, em detrimento da ênfase que dávamos às experimentações corporais no espaço da cena. Assim, era comum que nos escapassem detalhes da história da peça, dos seus fatos e acontecimentos, das relações entre personagens e tantos outros aspectos do texto que são tão caros ao processo de análise pela ação.
Conseguimos, a partir dessa experiência, aprender a estudar uma peça dramatúrgica, em suas diversas possibilidades de leitura, com a finalidade de levá-la à cena teatral.
Mas a compreensão racional dos aspectos dramatúrgicos, embora necessário, ainda não era suficiente. Precisávamos traduzir nossas ideias em VOZ, pesquisando e experimentando qualidades vocais que nos conduzissem à fala cênica atuante e viva. Assim, chegamos ao objetivo primeiro dos nossos estudos: o trabalho atoral sobre a ação física vocal. Nesse momento, o grupo foi subdividido em duplas para a realização de études virtuais sobre a cena escolhida. Cada dupla organiza seus dias e horários de encontros e, semanalmente, todos se reúnem novamente para apresentar o que foi experimentado, ressaltando as descobertas e as dificuldades encontradas no processo. Também realizamos gravações vocais individuais de fragmentos do texto e compartilhamos em grupo do WhatsApp para apreciação e análise de todos os participantes. Ao longo dos encontros, o professor Luiz Otávio sempre nos provoca e nos conduz à ação verbal autêntica, à palavra viva e reativa, evitando que caiamos em clichês ou na expressão de uma palavra meramente ilustrativa.Nosso trabalho sobre a fala cênica nos aproxima da concepção de Stanislávski, e também de Maria Knebel, para quem
Teatro é ação, e tudo o que acontece em cena é sempre ação, ou seja, uma expressão ativa do pensamento, da ideia íntima, uma transmissão ativa e atuante dessa ideia ao espectador. A arte dramática é uma arte sintética mas, na concepção de Stanislávski, a palavra permanece sempre como o principal e decisivo meio de impacto ativo [...] Ação verbal – eis o que torna o teatro dramático uma das mais fortes e emocionantes atividades artísticas do ser humano (KNEBEL, 2016, p. 122).
Não buscamos, com esses experimentos virtuais sobre a ação vocal, responder se o que estamos fazendo é teatro ou não é teatro. Nosso interesse é permanecer na constante atividade do fazer, na experimentação que nos conduz ao aprimoramento da técnica atoral. Enquanto nos mantemos em isolamento social, impedidos de contato com o outro e com o espaço físico da sala de ensaio, nos enveredamos pela fisicidade da palavra, pela concretude do som que também é corpo a agir pelo espaço.
O grupo de estudos aqui mencionado é composto pelo professor-coordenador Luiz Otávio Carvalho e pelos estudantes: Daniela Lima, Eric Pedroso, Felipe Valavez, Victor Damaso, Fernanda Xavier, Lorena Jamarino, Samuel Macedo, Mateus Cunha e Thiago Latalisa.
Referências
KNEBEL, Maria. Análise-ação: práticas das ideias teatrais de Stanislávski. Trad. Marina Tenório e Diego Moschkovich. São Paulo: Editora 34, 2016;
STANISLAVSKI, Konstantin.O trabalho do ator: diário de um aluno. Tradução de Vitória Costa. São Paulo: Martins Fontes, 2017;
Atriz e pesquisadora de Teatro. Bacharela em Interpretação Teatral pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestranda em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto, no qual desenvolve uma pesquisa sobre o trabalho de ator/ atriz a partir do sistema de Stanislávski. Também é integrante do Estúdio Fisções: princípios e práticas para a atuação cênica viva - grupo de pesquisa em atuação cênica, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
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