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PODE O TEATRO SER UMA FERRAMENTA PARA DISCUSSÃO SÓCIO-ESPACIAL?

Atualizado: 18 de jun. de 2020

Por MARIA LAURA


Todos(as) nós nos relacionamos e produzimos os espaços em que vivemos de formas diversas. No entanto, a discussão sobre a produção espacial é frequentemente pautada nos espaços extraordinários, ou seja, aqueles concebidos por arquitetos(as) e urbanistas, negligenciando a multiplicidade de espaços do cotidiano, principalmente nos contextos periféricos. E quando esses “outros espaços” – que, na verdade, configuram a maioria do que é produzido – são abordados, comumente os tratamos sob a luz dos mesmos instrumentos de análise usados para abordar os espaços especializados (Baltazar, 2014). Há, portanto, um problema evidente: independentemente do quão diversos sejam os nossos espaços – e, consequentemente, nossas relações com eles – continuamos a analisá-los e produzi-los a partir de uma única lógica, reforçando as ordens sociais e espaciais dominantes.


Fotografias: Acervo pessoal Maria Laura


Mas, antes de abordar a possibilidade das práticas teatrais como ferramentas de questionamento e de reflexão da produção sócio-espacial[1], julgo ser importante apresentar, de maneira sucinta, as formas pelas quais arquitetos(as) e urbanistas – assim como os(as) demais profissionais envolvidos(as) com a questão espacial – têm atuado nos contextos cotidianos e periféricos.

Tentarei ao máximo decodificar um pouco da linguagem arquitetônica para não-arquitetos(as), com o objetivo de ampliar o debate para aqueles(as) que têm pouco ou nenhum contato com a discussão espacial.

O Grupo MOM (Morar de Outras Maneiras), da Universidade Federal de Minas Gerais, sistematizou as atuações convencionais em três tipos, influenciando com maior ou menor intensidade as práticas desses(as) profissionais. A primeira delas, a “atuação tecnocrática”, é caracterizada pela adesão de normas, pelos objetivos e pelos procedimentos prescritos e impostos de “cima para baixo”, corroborando à visão de que o conhecimento técnico seria superior ao do grupo atendido. A “atuação missionária”, por sua vez, é aquela caracterizada por uma atitude de boa-fé ou de boa vontade, mas em que os profissionais levantam as demandas a partir do próprio olhar, considerando-as como necessidades universais. Por fim, teríamos uma “atuação autoral” ou artística, na qual o(a) profissional usa o trabalho para autopromoção, adequando os espaços aos moldes da classe média (Kapp et al., 2012).


Assim, de uma forma ou de outra, todas essas atuações acabam por funcionar a serviço de uma lógica heterônoma de produção do espaço. A fim de superá-la, precisamos de outras práticas que nos permitam experimentar e questionar os espaços com os quais nos relacionamos. Precisamos, além disso, de práticas que questionem essa perpetuação cega das relações de poder que findam na inferiorização dos conhecimentos dos(as) outros(as).

Mas, principalmente, precisamos de pensar em outros recortes e estratégias, que permitam que as decisões e discussões possam ser elaboradas a partir das peculiaridades e dos pontos de vistas locais, estimulando os discursos e as produções contra-hegemônicos.

Nesse sentido, acredito que as práticas teatrais podem contribuir com a discussão sócio-espacial, por proporcionarem outra relação com o espaço, que parte do corpo como instrumento. As práticas teatrais permitem ao corpo representar relações que costumam ser negligenciadas ou analisadas com certo distanciamento, torna-se, portanto, um potente canal de compreensão das opressões e das imposições do cotidiano.


Para além disso, pode servir para produzir estratégias próprias de agenciamento e de resistência, pois, a partir do momento em que o corpo é colocado em cena, não só os meios para se chegar aos objetivos ficam mais claros, mas também outras propostas de cotidiano são testadas.


Isso significa dizer que podemos criar teatralmente outras saídas e repensar, por meio da própria prática, táticas que evitem reproduzir a autoridade e a imposição, tal como o machismo, o racismo, o classicismo e as demais relações de opressão na produção sócio-espacial.

No entanto, é importante ressaltar que não se trata de qualquer teatro ou produção teatral. O teatro que não busca o diálogo, feito de forma autoritária e impositiva, servirá, também, para reforçar as relações de opressão e se submeterá aos mesmos problemas apontados aos arquitetos(as) e urbanistas e outros profissionais. O teatro que se oferece como um produto, uma obra acabada, tratando o espectador como um ser passivo tão pouco o levará a questionar e agir na realidade. A corporificação das discussões sócio-espaciais só é uma vantagem a partir do momento em que não se predomina o espetáculo, a representação, a imagem, mas o diálogo que assume com a experiência do espaço.


Isso não significa dizer que o teatro como espetáculo ou obra deva ser abandonado, ou que se deva deslegitimar e negar as importantes contribuições que trazem consigo. Inclusive porque, como público, sabemos do valor de um espetáculo como objeto estético, de reflexão, de informação ou de divertimento. Significa apenas que essas práticas não devem ser tratadas de forma hegemônica, como se sua "aplicação" em contextos sócio-espaciais periféricos fosse suficiente.


Portanto, defender o teatro como ferramenta para a discussão sócio-espacial é também uma busca de um teatro feito “pelo povo e para o povo”, de experiências teatrais populares e políticas como o Teatro Experimental do Negro ou o Teatro do Oprimido (entre tantas outras que eu, como leiga, uma arquiteta interessada pelo teatro, desconheço), que tornam possível o debate a partir das próprias estratégias de agenciamento e resistência (Chilisa e Ntseane, 2010).

Ou seja, experiências teatrais em que a prática cotidiana que informa a teoria, e não o contrário, e que partem do lugar de fala, das vivências e existências daqueles que têm a margem como local de resistência, livrando-se das amarras colonizadoras das teorias eurocêntricas.

 

[1] Assim como Souza (2013 apud Kapp, 2018, p.224) insisto na grafia com hífen, ao invés da grafia que sugere um continuum (socioespacial) por acreditar que tal continuum rompe também com a relação dialética entre espaço e nexo social.

 

Referências

  • BALTAZAR, Ana Paula. A sedução da imagem na arquitetura: Metamoris como alternativa pós-histórica. In: Alice Serra; Rodrigo Duarte; Romero Freitas (ed.). Imagem, Imaginação, Fantasia: 20 anos sem Vilém Flusser. Belo Horizonte: Relicário, 2014.

  • BOAL, Augusto. Técnicas Latino-Americanas de teatro popular: Uma revolução copernicana ao contrário. Editora Hucitec. São Paulo, 1979.

  • BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 1 ed. São Paulo. Editora 34, 2019. 232 p.

  • CHILISA, Bagele; NTSEANE, Gabo. Resisting dominant discourses: implications of indigenous, African feminist theory and methods for gender and education research. In: Gender and Education. 2010. N.6, V. 22, p. 617-632.

  • HOOKS, Bell. Choosing the margin as a space of radical openness. In: Framework: The Journal of Cinema and Media. Detroit, p. 15-23. 1989. Disponível em: <https://doubleoperative.files.wordpress.com/2009/12/hooks-bell-choosing-the-margin.pdf>. Acesso em: 19 jun. 2019.

  • KAPP, Silke ; BALTAZAR, ANA PAULA ; Campos, Rebekah ; MAGALHAES, P. A. N. ; MILAGRES, L. ; NARDINI, P. ; OLYNTHO, B. ; POLIZZI, L. . Arquitetos nas favelas: três críticas e uma proposta de atuação. In: IV Congresso Brasileiro e III Congresso Ibero-Americano sobre Habitação Social: Ciência e Tecnologia, 2012, Florianópolis. IV Congresso Brasileiro e III Congresso Ibero-Americano sobre Habitação Social: Ciência e Tecnologia. Florianópolis: PósARQ/UFSC, 2012.

  • KAPP, Silke. Grupos sócio-espaciais ou a quem serve a assessoria técnica. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 2, p.221-236, ago. 2018. Disponível em: <http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/babel/textos/kapp-grupos-socio-espaciais.pdf>. Acesso em: 25 maio 2019.

  • RENDELL, Jane. Only Resist: A Feminist Approach to Critical Spatial Practice. 2018. In: The Architectural Review 243 nº 1449. 8 p.


 




Maria Laura de Vilhena é arquiteta e urbanista com foco em cenografia, assessoria técnica e discussão sócio-espacial.




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