Por Letícia Andrade
Primeiro, gratidão! Escrever sobre minha trajetória num projeto do Teatro Universitário é um prazer e satisfação, pois é o lugar onde iniciei meu aprendizado como artista.
Tenho 42 anos e sou mãe da Alice de 12 anos. Sou conhecida artisticamente como Letícia Andrade, meu nome materno e, neste ano, fiz 25 anos de estrada no teatro, na arte e na literatura. Minha relação com a UFMG foi o caminho de uma formação multifacetada. Sou doutora com a tese "O papel do espectador nas dramaturgias contemporâneas brasileiras" e mestra em Teoria da Literatura, com a dissertação: "Instantâneos: o conto mínimo e a cena teatral em Fernando Bonassi", além de ser formada no curso de formação de atores Teatro Universitário da UFMG, em 1999. Além da pesquisa, sou dramaturga com mais de 19 textos de teatro, como autora e coautora de espetáculos em Minas, Sergipe e São Paulo.
Comecei minha formação no Teatro Universitário com 16 anos, no ano de 1995, e foi uma grande experiência de vida. Ainda bem adolescente, dividia meus dias entre o teatro e o ensino médio, no Estadual Central.
Estudei no prédio da Carangola, onde tinha a cantina do Helinho, com os professores Limoeiro, Linares, Esmeralda, Bya Braga, Mencarelli, entre outras e outros professores memoráveis. Sentimos, naquele período, a perda do grande artista Geraldo Vidigal. Pude ver trabalhos incríveis como “A casa de Bernalda Alba”, “A tempestade”, “O rei da vela”... foram grandes espetáculos de formatura. Eu tive a experiência de pertencer ao grupo Parlendas, dirigido pelo Rogério Lopes e fiz “Malassombro” em 2000, um trabalho com o qual tive um carinho muito grande, e acabei me formando apenas em 1999, com o espetáculo Feiticeiras de Salem, com a turma de 1996, devido a viagens com espetáculos e vestibular na letras da UFMG.
A partir daí, minha trajetória vai se direcionando aos grupos e aos estudos em literatura e, em 2001, começo meu mestrado. Em 2002, iniciei minha carreira como dramaturga. Dividia meu tempo entre a atuação, a dramaturgia e a docência. Foram dezenove dramaturgias até então, algumas como professora do Palácio das Artes, outras com grupos mineiros e outras três pelo Oficinão do Galpão Cine Horto. Trabalhei com a Maldita entre 2006 a 2010 e volto a trabalhar com o coletivo atualmente com o espetáculo Transe, nas mesmas funções de atuação e de dramaturgia. A partir de 2010, me mudei para Ribeirão Preto, onde comecei a dirigir meus trabalhos com grupos paulistas. Em 2013, vou morar em Aracaju e me efetivei como professora da Universidade Federal de Sergipe, na área teatral.
Minha conexão com a iluminação começa em 2013, quando, em minhas direções, comecei a trabalhar mais próxima da criação da iluminação e de parceiros do vídeo, além de começar a lecionar sobre iluminação em Aracaju. Em 2016, quando me estabeleço em Ouro Preto como professora de iluminação do curso de direção, me coloco novos desafios: de um lado, em criar e colocar em práticas metodologias de ensino da luz e, do outro, e ao mesmo tempo, em experimentar ações com luz e vídeo com o grupo Midiactors, coordenado pela professora e minha irmã Aline Andrade.
Em 2016, surge "Res[sus]citações e outras formas de sangue", com o grupo Midiactors, e pude realizar a concepção visual: direção, dramaturgia, figurino e iluminação. Em 2017, coordenei o projeto "Lumiar de aulas virtuais de iluminação teatral" e criei um grupo de estudos em iluminação no Facebook, que hoje conta com mais de 700 participantes interessados no estudo de luz cênica, formei alunas e alunos que hoje trabalham no mercado de iluminação. Além das trocas profissionais com iluminadoras e iluminadores em eventos de capacitação e divulgação científica da pesquisa, pude firmar parcerias com grandes artistas da luz, como Claudia de Bem, Camila Tiago, Rodrigo Assis, Nádia Luciani, Berilo Nosella, Wallace Rios, entre tantos que admiro e se tornaram amigues da luz.
Sobre #elaveioparaficar, pude mergulhar no universo das conexões entre luz, vídeo, projeções, uso de equipamentos eletrônicos que são cada vez mais recorrentes nas práticas teatrais contemporâneas. Os procedimentos tecnológicos e digitais estão hoje presentes na criação universos espetaculares de encenação.
Eu me foco na relação entre projeção mapeada e luz cênica, quais os graus de intensidade, qual a luminosidade da luz da projeção nos atores, o uso de luzes laterais para um jogo com as telas.
Além disso, buscamos as interações dos sons, imagens e atmosfera do universo da informática, sons de telefones, internet, imagens abstratas de linhas ininterruptas no espaço, uso de escrita com fontes inspiradas na escrita do computador, luzes frias e com pouca intensidade que contrastam com focos bem definidos dos dois atuantes na cena.
Para mim, a luz e sombra são epifanias inseparáveis, (lembro-me muito de Adolphe Appia e a iluminadora e pesquisadora francesa Veronique Pérruchon, quando aborda o “noir”), além de recortes bem definidos como momentos fragmentados que abrem o imaginário na mente dos espectadores e espectadoras. A luz nos toca sensível e violentamente, por isso a arte da iluminação é este jogo de encontros e fugas com o impossível que se torna visível e efêmero, num piscar de olhos.
Em 2018, comecei uma pesquisa sobre diretoras brasileiras e publiquei o artigo nomeado "(In)visibilidades e empoderamento das encenadoras no teatro brasileiro", na Revista Urdimento da UDESC. Hoje realizo meu pós-doutorado com a pesquisa intitulada: As diretoras atuais no Brasil: rastreamentos, empoderamentos e estéticas femininas no teatro contemporâneo, desenvolvida sob a supervisão da Profa. Sara del Carmen Rojo de la Rosa, na UFMG.
Dentro das ações de escrita do livro sobre diretoras mineiras, com depoimentos de Cida Falabela, Rita Clemente, Raquel Castro e Juliana Pautilla, também tenho realizado homenagens a diretoras pelas redes sociais e faço um mapa mundial de diretoras nesta publicação. Eu acredito muito na legitimação das mulheres na encenação e na técnica, incentivo alunas e alunos e busco a parceria delas no meu trabalho, por isso hoje faço um pós-doutorado sobre as diretoras mineiras, pois acredito que a história e o mercado devem acolher, respeitar e valorizar as profissionais mulheres.
Neste ano, retornei à Maldita Cia de Investigação Teatral com o experimento cênico Transe, com direção do Amaury Borges, autoria coletiva, e estou também na atuação, e assumindo também o papel de dramaturga. Este trabalho estreou em 11 de setembro de 2020, pelo projeto Cena Espetáculo do Galpão Cine Horto, na estreia do Festival de Cenas Curtas desse ano, versão online. Ditadura, tortura, feminismo, vozes negras, latina-americanas, a linguagem radiofônica e o desafio da transmissão ao vivo da cena. Esta experiência me fez cada vez mais pensar na legitimação das vozes roucas, apagadas e sufocadas pela nossa necropolítica, nossa compaixão por tantas mortes e tantos desgovernos fascistas. Vivemos uma condição sensível hoje, tantos desafios, frente a infindáveis mortes, e o desejo de mudar e a esperança de querer continuar em frente, para tanto deixo em homenagem a vocês, artistas, meu poema narrativa, que está em Transe. Minha voz e minha homenagem ao Teatro Universitário, casa que me acolheu, casa que iniciei minha busca pela arte, hoje e sempre.
Tempo de Santas
Madalenas nos ossos
Órgãos de Joanas
Cassandras de aço
Santas tramam sem penas
Elas chegam às estribeiras
Caem de cara nas placentas
Tontas, sonsas e torturadas
De faca nas mãos
Fiam fios de lâminas
Cruéis, de transes e cios
Dandaras nas poças
Elzas em distantes e roucas vozes
De séculos e trombos
Deocys em vias crucis
De mel e suor
Olgas em cavernas lúgubres
Emelys em terras férteis
Comitivas de verdades
Antígonas em fronteiras de fé
Elbas em púbis de chamas e
Espadas nas mãos
Nivaldas em ramos de manjericão
Lançados ao mar
Eu chego até aqui, moço-menino
O lucro da tortura de ontem
É o capital de giro do jogo de tráfico e bicho de hoje
Ela mete medo?
A porta é sem saída
Marias em pés das correntes libertas
Afrodites, dilmas
Catarinas e luzias
Caem na terra fértil
E dão brotos, sim,
elas doam
sem querer ou
sem escolher
a semente
Plantam o tempo ancestral
E aquecido das mantas
Tecidas pelas mães de maio
De janeiro a janeiro
Tecidas por histórias mudas
De tapas em riste
Na cara e no colo mole
De fios fincados por debaixo das unhas
Da violação das peles queimadas
e dos ventres de servidão
pelos homens cheios de palmas e falos
com suas fibras duras
vis e rijas
de psicose
e doença branca
e controle bruto
não se esqueçam dos ventres cansados do trabalho
das crianças órfãs, das bacias cheias
e este silêncio que parece tão natural
Agora, chega moço,
Não se esqueçam da ofensa,
Do cuspe,
Do corte,
Da ferida,
Do catarro
E do facho
De cabelo arrancado
Na mão de macho
Agora, chega moço,
Acende
Não, apaga o respiro
Transpira e acende na tua cara
Acende sua cara
Não se esqueçam
De transpirar
As pobres, pretas, bichas
As guerreiras e rendeiras
Mal pagas, sem nome
Sem estatísticas
Chega até aqui,
Lá vem ela toda de branco
Com lírios nas mãos
Noiva emputecida
Louca, lúcida
Lisístrata
Lá vem ela!
Deocys, Elbas e Emelys
Ela voa
Se destoa
Ela não doa,
Não assim à toa...
Lá vem ela!
Deocys, Elbas e Emelys
Espadas, vozes e carnes
Em alerta!
Preparadas para a guerra.
De frente para o futuro!
Atravessa todo muro
Punhos altos prontos ao murro!
Lá vem ela!
Toda louca
Toda à toa
Tão lúcida
Agora chega!
Pombos voam de seus lábios
Saem e voam penas ao Sul
Dessa América em cinzas
Lá vem ela!
Toda lívida,
Toda cínica
Toda santa
Sacerdotisa e
Papisa
Pisa no samba
Irreversivelmente
São todas elas,
No sangue, nos ossos
Nas veias abertas
Nos seios fartos
Nos bicos murchos
A faca, o fio e o choque
Chega!
Vamos sair daqui
Chega!
***
Agradeço muito partilhar com todas, todes e todos vocês um pouco da minha história artística e que espero possa inspirar e incentivar a formação de futuras e futuros artistas da cena.
Referência
OLIVEIRA, Leticia Mendes. (In)visibilidades e empoderamento das encenadoras no teatro brasileiro. Urdimento, Florianópolis, v.3, n.33, p. 157-173, dez. 2018. Acesso em 03 set. 2020. Disponível em: http://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573103332018157/9463
Leticia Andrade é atriz, mãe, cozinheira, diretora, dramaturga, professora de teatro e iluminação cênica na UFOP e escritora de vidas latentes e anônimas.
Comments