Por Marcio Meirelles e Teatro dos novos
registros são necessários
a história a memória são necessárias
então o registro: no dia 14 de março a companhia teatro dos novos fez
a última apresentação de A TEMPESTADE espetáculo premonitório
espetáculo documento de um momento
espetáculo testamento de uma era
a última peça assinada por shakespeare
a última a ser apresentada pelo histórico teatro vila velha
antes q fechasse as portas para artistas e para o público
antes que deixasse de ser por um tempo o LUGAR-DE-ONDE-SE-VÊ
tradução da palavra grega TEATRO
termo que em todas as línguas significa
a linguagem e o lugar onde a linguagem encarna
e atravessa a cidade como um reflexo do que é e do que poderia ser
onde a atriz/ator deixa de ser e mostra o outro que ele não é
mas poderia ser
não é
mas conhece muito bem
tão bem q pode reproduzir em seu corpo emoção razão e voz
tudo q está em outro lugar q não em si
e fundir-se ao q não é e tornar-se também
quando tomamos a decisão dura de suspender
a peça e as atividades do teatro
pensávamos no outro porque sempre pensamos no outro
para representá-lo para encantá-lo para ajudá-lo a tomar decisões
para vê-lo ocupar o LUGAR-DE-ONDE-SE-VÊ
ver-nos ali e unir-se a nós para cuidar da polis
por isso – como um paradoxo
mais um de tantos que habitam o teatro –
fechamos o prédio onde fica o LUGAR-DE-ONDE-SE-VÊ
porque é o que fazemos de onde somos vistos
cuidamos de quem nos vê
as atrizes e os atores da companhia teatro dos novos na mesma semana
se propuseram a trabalhar e repor ESPELHO PARA CEGOS
peça inaugural da nova formação do grupo
peça inaugural de nossa relação com matéi visniec
para inaugurar também com ela o novo tempo de depois da pandemia
no mesmo palco do vila onde jaz silente o cenário da tempestade esperando que a ação retorne e a ilha de ariel e caliban volte a viver
não tínhamos como repor
as coisas não mais se encaixavam o tempo é outro o mundo é outro
o palco é outro o vila é outro
o NOVO VILA VIRTUAL
um novo prédio um novo palco um novo TEATRO / LUGAR-DE-ONDE-SE-VÊ
não temos agora nosso palco feito de concreto ferro e madeira
temos um palco feito de telas ferramentas plataformas e pixels
e o LUGAR-DE-ONDE-SE-VÊ
fragmentou-se espalhou-se está em muitas partes em muitas janelas
em muitos prédios espalhados por vastos territórios e tem muitas formas
temos uma rede de LUGARES-DE-ONDE-SE-VÊ
um WEB TEATRO
e é nele que vamos recriar as peças do TEATRO DECOMPOSTO
sem ironia
não o ESPELHO PRA CEGOS
mas os FRAGMENTOS DE UM TEATRO DECOMPOSTO
uma nova peça usando outros tempos e outras ferramentas
foram exatos 5 meses de trabalho para entender o tom a escala cromática a atuação
que textos em que ordem como entra o som a música corelli e ramon
uma nova equipe técnica novo processo de montar a luz de construir cenários
de combinar roupas num figurino de contracenar
para esse novo WEB TEATRO
para esse novo espectador para esse novo tempo
exatos 5 meses de ensaio e o registro: no dia 14 de agosto
voltamos à cena reinventamos a nós próprios
e matéi escreve um artigo que contextualiza a encenação
um passeio em paris deserta
era o q precisávamos para encerrar o espetáculo
a louca lúcida depois de nos contar o esvaziamento do mundo pelo bicho chuva
passeia na cidade vazia
é preciso tornar este tempo em poesia para poder encontrar razões para seguir
é preciso perceber o que se passa enquanto passa
é preciso acreditar que o TEATRO só acontece aqui e agora
que não podemos esperar depois quando as coisas voltarem
as coisas não voltam as coisas seguem o tempo é e nós passamos
é preciso criar este LUGAR-DE-ONDE-SE-VÊ agora
e ver o que passa pra nunca nunca mais
para que tudo faça sentido
como só faz sentido uma cidade se é habitada
só faz sentido uma cena se houver um TEATRO
onde possamos nos ver com compaixão e horror
marcio meirelles
salvador . 14.08.2020
A Tempestade - Fotos: João Millet Meirelles
Marcio Meirelles, Loia Fernandes e O homem lata de lixo - Vick Nefertite e o Clara Romariz morador de rua - Miguel Campelo
A louca tranquila - Clara Romariz , a louca febril - Loia Fernandes e a louca lúcida - Chica Carelli (embaixo)
Teatro Decomposto - Fotos: Ananda Ikishima
Surgida em 1959, a Companhia teatro dos novos foi criada pelas atrizes e atores Othon Bastos, Carlos Petrovich, Sônia Robatto, Echio Reis, Teresa Sá (Maria Francisca) e Carmen Bittencourt e pelo diretor João Augusto. Em 1964, o grupo inaugurou o Teatro Vila Velha com o objetivo de ter um espaço para criar, produzir e pensar sua época numa perspectiva ampla, através do teatro, explorando novas linguagens e colocando-se na vanguarda das artes cênicas na Bahia. Nos seus 60 anos de existência, a experimentação tem sido o eixo conceitual das produções da companhia. O Teatro dos Novos mantêm tanto o diálogo com autores do seu tempo, quanto a contextualização de autores clássicos e seus temas para a paisagem conturbada do contemporâneo. Nos último anos a companhia mantém seu compromisso de experimentação e diálogo com a sociedade. Nos dois últimos anos, a companhia montou Storni-Quiroga, Pela Água, Treva ou Os princípios da higiene funcional, Por Que Hécuba, OssO, Hamlet e Ofélia, A Tempestade e Fragmentos de um teatro decomposto.
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