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TORNAR-SE AQUILO QUE SE É

Por MATHEUS CUNHA


A história das ciências humanas através dos séculos é a história do lento desvelamento do ser humano. Expor cada vez mais os níveis profundos da nossa obscura mente, após um longo período de absoluto e sagrado sigilo, é uma dádiva e uma maldição. A antropologia, por exemplo, trouxe à luz a miríade de possíveis expressões socioculturais e, desde então, a figura do Outro pôde não apenas ser compreendida, mas calmamente incompreendida em sua diferença e multiplicidade.


A psicologia cindiu a mente e dividiu o ego e, então, deu-se a chocante descoberta do ser humano enquanto indivíduo fragmentado: indivíduo habitado por muitos outros indivíduos. A linguística expôs os mecanismos mais sutis de expressão subjetiva, transformando o conceito de “cultura”, dando-lhe um significado outro, mais amplo, mais necessário e inevitável. A arte, a arte, a arte em sua universal expressão fez uma empreitada muito semelhante. No entanto, em sua singularidade, trilhou seus caminhos próprios.


Se a expressão artística é nada mais que uma tentativa de leitura do mundo, ou seja, nada mais que uma forma de apreender e suportar a realidade que envolve o ser, restou à arte compreender-se novamente. Agora, num mundo novo habitado por uma humanidade mais desnudada. O que, dessa nudez revelada, seria nossa força de artífice? Nossa força de artista?

Antes de tudo, pergunto: o que há em comum entre todas essas revelações? Qual foi a grande conclusão que a ciência humana nos deu mesmo nos seus primeiros anos? O Outro. O presente dado a nós foi conceber que, não só o mundo é suficientemente vasto para que nele caibam universos para além da individualidade, mas também que, dentro de nós mesmos, existem Outros, mais ou menos secretos e infinitos. Perceber mais profundamente o Outro, saber que ele está a circundar-nos e conviver conosco: eis o grande presente, eis o grande desafio.


O GRANDE RIO, de José Leonilson


Um grande estudioso da língua, Patrik Charaudeau, disse que a tomada de consciência acerca de si mesmo se constrói através de um princípio de alteridade – ou seja, um sujeito só se afirma sujeito por ser o que o Outro não é. O Outro, essa entidade do não-ser, passa a representar, ao mesmo tempo, uma necessidade (já que não é possível existir sem ele) e uma ameaça (já que é impossível conhecê-lo totalmente, nem é possível dominá-lo e apreendê-lo). Sobretudo, é insuportável aceitar que outros valores e hábitos existam e possam funcionar.


Friedrich Nietzsche, esse controverso filósofo, num dos mais estonteantes livros já escritos (A Gaia Ciência), apresenta-nos a ideia de que a sociedade atribui à constância uma boa reputação. Já explico: é esperado que, para ser confiável, um indivíduo deve manter-se sempre o mesmo, inalterado, com virtudes e vícios previsíveis. O único problema é que, diante da multidão de pessoas que fazem morada em um só indivíduo, é insensato pedir que alguém seja sempre imutável. Para o “bom senso”, toda mudança, reaprendizagem e transformação de si é rejeitada – e como pode ser assim? O ser humano é, acima de tudo, um mosaico fluido incapaz de rigidez, pois está cheio de vozes distintas dentro de si.


Outro grande nome, mas da filosofia e da arte cênica, Peter Pál Pelbart, em um maravilhoso ensaio chamado Poéticas da Alteridade, diz que “nós chamamos de louco quem está povoado de uma multidão de ideias que se alternam ou coexistem, e que são incompatíveis entre si”. Sendo experiência inevitável, sentir o Outro em si (ou, como diria Fernando Pessoa, outrar) revela em nós o potencial da expansão e do aprofundamento de nós mesmos. A “unidade” que imaginamos ter enquanto indivíduo é, nas palavras de Pelbart, “assaltada por inúmeras forças, por inúmeras singularidades, por inúmeros devires, por um sem número de outramentos, que a deformam o tempo todo”.


O que deforma o Ser é o Outro, é o cruzamento de olhares entre ambos. Este Outro que, para além de humano, pode ser um raio de sol, a grama, o vento, um livro, um pedaço de tecido, uma dança, um gatinho. “Cada encontro que me afeta pode ser uma ocasião para outrar, cada força que eu cruzo pode disparar em mim um outramento” – é o que diz Pelbart.


Poucos minutos atrás, fui ao sol, observar a luz dele sobre as árvores próximas à minha casa: a imobilidade de uma jabuticabeira me deixou perplexo e, na perplexidade, imobilizei-me também. Outrei – ou, pelo menos, tentei outrar – a árvore. Acabei chorando no processo.

Na multiplicidade, nessa constante mutação do ser, pode alguém perguntar: “quem sou eu?”. E, afinal, não seria o momento de arriscar dizer que eu, escondido sob essa forma humana que dá a falsa ideia de individualidade, sou o habitat de forças caóticas, de múltiplas vidas, de um eterno tornar-se? Eu sou, então, o cosmo todo contido em mim – mesmo que em potência, mesmo que guardado por uma frágil e limitada casca de pele e sangue.

"Bufão-ciborgue-queer", finalização de disciplina da graduação em Teatro (06/2019) - Foto: Acervo Pessoal


Enquanto casa de inúmeras forças, como pode o ser guiar-se por elas todas, de forma a expressá-las e liberá-las, ainda que diante das falhas inerentes da linguagem? Peter Pál Pelbart nos dá uma entusiasmada ideia: “o que é a arte senão isso, captação de forças?”. Ora, então como dar corpo, dentro dessa forma humana que temos e que nos é vendida como ideal, às forças que nos habitam e que estão em fervura dentro e fora de nós, pululando, gritando? Creio que a pergunta derradeira seja: como dar passagem a Dioniso? Aqui, gostaria de falar de Keith Johnstone.


Em seus pioneiros estudos, Keith Johnstone, teatrólogo inglês, notou a contínua repressão da subjetividade dentro da lógica capitalista massificante da sociedade moderna. Johnstone narra, num dos livros mais importantes para o teatro da segunda metade do século XX (Impro: Improvisation and the Theatre), sua experiência destrutiva dentro do sistema de educação britânico, e o seu lento e paulatino processo de perda da organicidade, da espontaneidade e do brilho no olhar. Uma perda assim acontecia devido a tal forma de pensar que castrava o sujeito de todo potencial criativo por meio da busca pelo “não-erro”, pelo “não espontâneo”.


Johnstone, ao assistir uma cena do filme Terra de Dovzhenko, sentiu uma epifania, uma súbita revelação a respeito da sua condição e da sua potência. Nesta cena, o herói trágico, mesmo sabendo do perigo iminente, continua a andar em direção a seu fim, dançando extasiado enquanto olha a morte nos olhos. Nas palavras dele, “com o homem dançando sozinho numa nuvem de poeira algo se desbloqueou em mim. O homem que dançava poderia ser superior a mim – preso pelas palavras e incapaz de dançar”. Diante da alma dionisíaca, a nossa consciência brutalizada e a nossa forma humana limitada se espantam, enchem-se de fascinação.


“Os outramentos, o mapeamento das forças que me habitam e me rodeiam, a experimentação estética dessas forças é uma maneira de combater uma certa mesmice entrópica que nos sufoca e nos soterra por todos os lados” – isto, interessantemente, dirá Pál Pelbart.


Numa das mais provocativas passagens de A Gaia Ciência, Nietzsche dirá que a chave para a liberdade é não mais ter vergonha de si mesmo. Olhando a nós mesmos de longe, rindo ou chorando por nós, descobrindo o “herói” e o “tolo” em nós, alegrando-nos com nossa própria estupidez e erro, para alegrarmos então frente a nossa sabedoria. “Justamente por sermos homens pesados e sérios, nada nos faz tanto bem quanto o chapéu de bobo” – isso diz o filósofo.


Dando voz a esse tolo que nos habita, a esse Dioniso que grita, a esse Outro habitante de nós e cuja força nós tememos e repelimos; deformando, portanto, esta clássica forma humana e dando boas-vindas a uma nova, múltipla e heterogênea forma não-humana: assim uma mínima faceta das nossas forças interiores pode ser parida. Assim, podemos tentar, finalmente, outrar a nós mesmos. Assim podemos revelar, em paz e, ao mesmo tempo, em frenesi, a orquestra de vozes que encontra casa em nós: e, quem sabe, tentar cumprir a mais difícil das metafísicas, proposta pelo próprio Nietzsche: “tornar-se aquilo que se é”.

Vistamos cada um nosso chapéu de bobo, abracemos nossa própria arte pululante e polifônica, fazendo as pazes com nossos Outros. Provocado por Pál Pelbart eu, finalmente, provoco: o que, dentro e fora de nós (dentro dos múltiplos “noses”) pode desfigurar aquilo que estamos acostumados a ver, perceber e viver? O que pode nos arrancar de modo arrebatador da forma pela qual nos acostumamos a sentir o mundo? O que nos causa um outramento? A busca pelo Outro é a busca por si: a tentativa de redimir a humanidade em sua própria nudez e desvelamento.


 

Referências

  • CHARAUDEAU, P. Identidade social e identidade discursiva: o fundamento da competência comunicacional. In: PIETROLUONGO, Márcia. (Org.) O trabalho da tradução. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009, p. 309-326.

  • JOHNSTONE, K. Impro: Improvisation and the Theatre. 5, ed. Londres: Methuen Drama, 1987.

  • NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. 1, ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

  • PELBART, P. Poéticas da Alteridade. Bordas, Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n. 0, 2004.

 

Matheus Cunha é ator, escritor e pesquisador. Nascido em Patos de Minas na virada do século, mudou-se para Belo Horizonte em 2018. É atualmente licenciando em Teatro (Escola de Belas Artes, UFMG) e pesquisador nas áreas de ação-física e improvisação. Está em processo de formação complementar em Letras (Faculdade de Letras, UFMG), pesquisando análise do discurso e literatura moderna.


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