Por Thálita Motta
1. Antes tarde do que nunca
Nasci em 1989, quase exatos dois meses antes da queda do muro de Berlim. Muito longe dele aqui nos trópicos, no interior dos interiores da América Latina, o Sul do mundo do lado de cá. Estive apenas dois meses no mundo moderno, segundo marcam alguns teóricos, inaugurada na existência sendo contemporânea à chamada pós-modernidade que, desde então, vem me assombrando à medida que se desenvolve, afinal de contas, olho no espelho e me reconheço nela, em sua sombra, em sua luz difusa, ainda que jovem, a meu tempo.
Tal qual nos conta a história dos homens, no mesmo ano no Brasil, digamos, antes do início da pós-modernidade, entra em circulação a unidade monetária do cruzado novo; é inaugurado o Memorial da América Latina, idealizado por Darcy Ribeiro e projetado por Oscar Niemeyer; Paulo Tarso Flecha de Lima assina em Havana, Cuba, na embaixada vietnamita, um documento que estabelece relações diplomáticas com o Vietnã; é fundada Palmas, capital do Estado de Tocantins.
Depois da queda do muro: O vôo Varig 254 cai na Floresta Amazônica, próximo a São José do Xingu e mata 13 pessoas; o Presidente José Sarney sanciona a lei do divórcio, reduzindo o prazo de separação; são realizadas as primeiras eleições diretas desde 1960 no Brasil, na disputa presidencial entre Lula e Collor, o segundo é eleito o 32º presidente do Brasil.
Nasci junto com a onda, tentando não tomar um belo caldo, porque surfar na crista da pós-modernidade é para poucos. Do interior dos interiores, vim depois de “estudada”, morar na capital dos interiores – a roça grande – como muitos dizem, para tentar como muitos a sorte de poucos. Ainda em processo das tentativas de não tomar um belo caldo do tsunami, que virou “isso tudo que está aí”, com o perdão do bordão, nesse imenso “salve-se quem puder!” que fizeram da América Latina e de suas veias abertas, eu precisava dizer que não. Não sou daqui, marinheiro!
2 . Quem sabe faz a hora não espera acontecer
Para cada época, o coach que merece. Estamos exaustos de nós mesmos, não é mesmo Byung-Chul Han? Tudo depende de nós, do nosso autoamor, do self care, da autopiedade e uma porção de autoritarismos -- positive vibrations -- de nós para nós bem pós-modernos em posts modernos (risos de constrangimento). Delirium narcísico ambulatorium. Precários!
Como somos precários! Como são precários até mesmo os nossos sonhos narcísicos mais artísticos! Netflix! Outro dia me dei conta. Prefiro nem comentar. De tão cansados, há quem comemore a pausa, de tão precários e narcísicos também: eu bem que tava precisando parar um pouquinho – alguns mais discretos que outros.
2020, o agora, o ano que nem os mais trágicos profetas pós-modernos tiveram imaginação para prever, porque imagino que seja preciso alguma imaginação para ser profeta -- tamanha a catástrofe -- uma catástrofe um tanto silenciosa se comparada às outras de nosso tempo, afinal não daria para fazer muito barulho se estamos diante de um tempo em que não respiramos direito.
E cada um e cada uma tem lá os seus motivos diretos e indiretos. 2020, o ano em que não respiramos, claro, nem todos, os bilionários, por exemplo, expandiram bastante suas fortunas e você se pergunta para quê, naturalmente.
Atentos aos profetas pós-modernos, agora a nova onda dos bilionários é construir lindos bunkers, enormes e luxuosos bunkers. Eu fico imaginando se Bill Gates alguma vez leu Foucault. Não sei se é exatamente uma onda nova, mas parece que a especulação imobiliária dos bunkers king size aumentou, aí deu no jornal. Eu juro que tento não achar graça, porque penso que nunca na vida vou ter um bunker. Se a coisa apertar desse tanto, na minha dispensa tem algumas latinhas de ervilha em conserva, numa situação um tanto melhor do que Woyzeck, é verdade. Acho um pouco de graça porque penso neles todos empapuçados de dinheiro e, ainda assim, cãezinhos assustados pelas neuroses que uma pobre ex-crente, como eu, tive no bug do milênio em pleno ano 2000, aos dez anos de idade. De que vale sobreviver com uns poucos ratos pingados em um mundo sem essa confusão que são os seres-humanos em toda sua perfeita contradição? Como Bartleby, de Melville: I would prefer not to. E pronto, me sinto aliviada por aceitar a ideia da mortalidade. Ponto pra nós, meros mortais com nossas ervilhas enlatadas na dispensa.
3 . Eu acredito é na rapaziada
Meus colegas de profissão estão, com toda razão, preocupadíssimos com o destino do teatro presencial nesse momento de virtualização. Virus e virtu são palavras próximas. Com a internet, ainda nos anos 1990-2000, vivenciamos os primeiros virais, efeitos cardumes virtuais de visualização de coisas geralmente meio bestas que nos faziam meio alegres e conectados. A internet era uma grande promessa de democratização de tudo quanto há, inclusive das bubiça, vejam só a proporção que ganhou em nosso país a instituição meme. Uma partilha virótica da nossa sã bobagem, em alguns casos, boa dose de sadismo, que penso eu, fruto de milênios de bullying que, ao que parece, não superamos nunca, millennials, nessa eterna adolescência que a internet nos proporciona.
As colegas de profissão nem tanto, sabem que não chegamos ainda nem perto da equidade de nossas produções, visibilidades, reconhecimentos, salários, coisas que, em parte, nos apagam da história e, certamente, com ou sem a virtualização do teatro pela internet nesse momento de pandemia, estamos à margem, e as margem tem muitas margens, sabemos, e a culpa é menos da internet e da pandemia, ainda muito recentes.

Como de se esperar, uma estudante de teatro foi quem deu um susto em nós, que estávamos catastróficos em nossos brancos deleites filosóficos do apocalipse-do-teatro-now, nos chamando para a real, eu quero fazer. Eu não ouvi a fala diretamente, quem me contou foi a Raquel Castro, minha amiga querida e parceira de teatro (que sorte a minha!) e eu entendi que a aluna havia dito que era preciso não abandonar os espaços de feitura, sejam eles quais forem, porque meu caros amigos, quem somos nós na cesta básica para deixar de fazer e achar que a nossa ausência constitui alguma coisa próxima à relevância de um espaço vazio à la Peter Brook, ou do silêncio de um John Cage, vocês sabem bem o porquê. Desculpem se estou sendo reducionista, só queria aproveitar os conceitos. Vazio e silêncio é o que já nos destinam, nós mulheres, quanto mais à margem da margem estamos, sabemos, e é bem verdade que a internet vem possibilitando alguma presença. Polêmico mesmo.
Eu de cá, não tenho ambição nenhuma de dizer o que é certo nisso tudo, mas como ex crente apocalíptica que fui, estou tentando não ceder demais ao imaginário de fim-de-tudo, porque, aparentemente, é o que me faz sentir melhor do que um bilionário.
Haverá mundo, outro mundo, talvez de péssimo gosto com esse tal de novo normal, um verdadeiro horror! Eu fico profundamente triste com os cenários futuros, mas não poderia deixar de fazer o que eu posso fazer hoje, dentro dos limites éticos aos quais me atenho, a silenciar-me, por apego estético, logo eu que não tenho e nem terei os meios de produção, porque sou uma simples operária técnica, professora e diretora, meio pau pra toda obra, porque, como eu disse lá em cima, nossos sonhos também são precários e eu sinto muito repetir aquela máxima, mas não existe vazio de poder.
Me preocupa mais o teatro da pós-verdade, que vem sendo feito para multidões, usando todas as plataformas virtuais e imaginárias, experimentando todas as linguagens, as nuances, os ritmos, os gestos, as excrescências do mundo. Isso me aterroriza como à menininha com medo do bug do milênio no ano 2000, quando Jesus certamente voltaria. Detesto inclusive esse termo, antecipado pelo velho Nietzsche, em tamanha relativização da verdade quando afirma que "não há fatos, apenas versões". Eu tô doida pra esse mundo acabar, mas não acaba não, porque mal sabemos como começou.
Me soa absolutamente irônico e até mesmo cínico que, em 2016, pense bem, o Dicionário Oxford tenha elegido ‘pós-verdade’ como o verbete do ano. Imagino aqui com meus botões, qual seria o ano das ‘fake news’ e tantas outras aberrações da linguagem contemporânea a que absorvemos rápido como álcool. Sobre o teatro, me preocupa além do como, o que. Carrego fios brancos nos cabelos desde o ano 2000, quando comecei a respirar mal.

Thálita Motta é doutora em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre da Área de Artes na Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto (2011). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Teatro, atuando principalmente nos seguintes temas: elementos visuais da cena (figurino, cenografia, caracterização cênica), performance, direção teatral e arte/educação. Faz parte do grupo de pesquisa LEVE - Laboratório de Estudos e Vivências da Espacialidade (UFMG/Cnpq) e do Grupo de Estudos teórico/prático Terreiro de Pesquisa: saberes na encruzilhada, da Equipe que criou e que organiza o Laboratório de Cenas Curtas - A-mostra.LAB. Foi professora da disciplina de Caracterização Cênica, Cenografia e Figurino do curso profissionalizante do CEFAR (Palácio das Artes/FCS), onde atuou também no desenvolvimento dos elementos cênicos das montagens dos espetáculos de formação. Em 2017 fez a Coordenação Geral dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto e também Coordenou o Núcleo de Pesquisa em Cenografia e Figurino do Galpão Cine Horto. Foi professora substituta das disciplinas de Cenografia, Caracterização e Materiais Expressivos na Universidade Federal de Ouro Preto. Atua como diretora no Coletivo Transborda. Em 2019 atuou como Professora e Coordenadora do Módulo Tecnologias da Cena do CEFART/Fundação Clóvis Salgado e atualmente é Professora da Disciplina de Atuação e Montagem do Curso de Teatro do CEFART, onde desenvolve um processo como diretora teatral.
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