Por Elaisa e Wendell Guilherme
Trazendo diretamente do PODésTUdo circense, disponível na plataforma spotify, Ermínia Silva fala um pouco sobre sua trajetória de vida e quais foram suas percepções e descobertas pesquisando sobre a história do circo brasileiro.
Maria Clara - Seja bem-vinda Ermínia! Para mim, você chegou num primeiro momento como uma referência bibliográfica, inclusive foi minha banca de defesa de mestrado. Gostaria que nos falasse um pouco do seu percurso de estar ali numa banca de mestrado como referência em circo na academia, do porquê da sua escolha sobre seu mestrado e doutorado estarem interligados com a temática circense, se você encontrou dificuldades nessas relações e de como é este ensino mais formalizado dentro das universidades.
Ermínia Silva - Meu nome é Ermínia Silva, mais conhecida como Mina. Sou da quarta geração de família circense no Brasil, pesquisadora, coordenadora do Circonteudo, Co-coordenadora do grupo de pesquisa do Circus.
Inicio falando sobre minha trajetória em termos de pesquisa. Nasci no circo em 1954. Sou a geração que não vai ser artista, pois há um processo no final do século XIX e que, em 1950 vai se consolidando, que é a questão da educação, do fazer pedagógico, do fazer da pesquisa, que tinham um lugar: a escola e todos os seus estágios, da primária à “dita” do curso superior. Então, há um processo longo de que o saber, o aprender e a produção de conhecimento tinham um lugar, que eram as escolas e que todo o resto dos processos de vida, de vivência, de experiências não eram produções de conhecimentos que tivessem valor, que tivessem um cunho científico e que fossem reconhecidos.
A partir do final dos anos 1940, começou a fazer sentido para os grupos familiares circenses, que a geração seguinte não seria portadora dos saberes e práticas circenses, que algo teria que ser mudado. A valoração desses saberes não estaria entre eles, porque eles não eram produtores de metodologias ou pedagogias. Começaram a acreditar num certo discurso que foi feito a partir do final do séc XIX e metade do XX, que não havia produção de conhecimento. Havia produção de saberes, colocando os saberes tradicionais como uma coisa folclórica, mas não de um saber que produz conhecimento. A produção de conhecimento tinha um único lugar: as escolas. E que eles, circenses, não produziam esse conhecimento. Ensinar duzentos e tantos anos a capacitação de formar profissionais circenses, não era uma produção de conhecimento. E esse pensamento não se restringia exclusivamente ao Brasil, mas também a toda a América Latina e a alguns países da Europa.
Até a década de 1970, a maioria dos grupos circenses itinerantes passa por um processo de transformação que altera significativamente o processo de organização do trabalho e o processo de socialização, de formação e de aprendizagem. Não é mais um saber coletivo, não é mais um processo pedagógico coletivo. O coletivo não é mais o responsável por esse processo de formação. Esse processo de formação agora é familiar e individualizado.
Até a minha geração, tinha também um processo de produção dos corpos como corpos coletivos, como corpos múltiplos, artistas múltiplos, fossem homens e mulheres, crianças, adolescentes ou adultos, aprendiam tudo! Tinham que dominar várias linguagens artísticas. O artista especialista em algo, ainda não estava dado. Todo esse conjunto de processos de aprendizagem, de formação profissional, passa por um processo de transformação que resulta na gente sair do circo, se estabelecer numa cidade e se matricular em escolas. Mas só depois que eu começo a fazer pesquisa sobre circo é que eu vou tendo noção disso… Depois eu percebo que essa forma da coletividade, da produção dos corpos artísticos, na sua multiplicidade artística pressupunha que a vida da pessoa tinha que estar inserida nesse processo de formação. Quando a gente ia pra escola, a nossa vida tinha que ficar pendurada no cabide do lado de fora, ela não entrava na sala de aula. No entanto, no circo, as crianças aprendiam matemática como uma forma de processo de continuidade do saber circense. Aprendiam o português porque isso fazia parte do processo de aprendizagem na relação com a cidade, na relação das escritas e das leituras das peças teatrais. E sem saber, aprendiam física, porque eles tinham todo um saber dinâmico corporal. Eles eram geógrafos, porque eles tinham que entender o mapa dos lugares que eles iam. Era geografia social, política e física, eles tinham que saber onde estavam chegando, quais estradas, os transportes, se a cidade era agrícola, industrial, quais as festas populares estavam acontecendo. A complexidade de produção de conhecimento deles era muito grande, mas, ao mesmo tempo, isso não foi o suficiente para eles entenderem que aquilo garantiria uma valorização social da geração seguinte. Então, a geração seguinte não se tornou a portadora de saberes e práticas desses conhecimentos. Eles se convenceram de que não tinham metodologia, pedagogia, que os seus saberes não eram sistematizados. Tudo isso eu fui compreendendo a partir das minhas pesquisas. Fui percebendo a complexidade de produção artística que eles tinham e o quanto não se sabia dessas produções, pelos próprios circenses. Havia um zero de entendimento da academia, da universidade. O circo era estudado como algo folclórico, mas não era considerado como produção de conhecimento.
Havia uma disputa, no final do século XIX e início do XX, de quem era o dono da produção dos corpos. Nos estudos de Daniel de Carvalho Lopes, a gente vê que os circenses estão dentro das escolas oficiais, estão formando grupos em todos os lugares de produção dos corpos: em clubes, nas academias de ginástica, na natação, na canoagem, o circo está presente fazendo ginástica. Mas há um grupo da medicina higienista e a produção da ginástica científica (que depois vira educação física), que tem uma disputa muito grande com o circo, de que eles não produzem conhecimentos sobre os corpos. Os donos dos corpos são a medicina e a ginática científica. Os circenses não tinham produção científica e adequada para não estragarem esses corpos. E isso está até hoje, esse debate não acabou…
No início do século XX, quando você olha pro cotidiano com uma lente de aumento, você vai ver a mistura o tempo inteiro. É todo mundo misturando produção de conhecimento, todo mundo se copiando, todo mundo trabalhando junto. Mas, na hora de pensar na produção de disputa teórica, de disputa política e de disputa de saber, os circenses não são produtores de conhecimento dos corpos. Eu ainda não tinha uma elaboração muito segura disso quando eu comecei a entrevistar minha família. Eu fazia pesquisa oral e a cada entrevista eu percebia que eu era uma total ignorante sobre o processo histórico circense e do processo histórico de formação circense. Depois de dois anos que eu estou realizando essa pesquisa oral, eu arrisco fazer vestibular, porque eu quero levar essa produção para dentro da academia. Eu não sabia quais os caminhos que eu ia fazer com aquela pesquisa, como eu ia usar aquele material. E eu queria que o circo estivesse dentro da academia! Eu desconhecia que havia poucos que tinham feito pesquisa dentro da academia. A Regina Horta Duarte e o Mário Bolognesi eram os pesquisadores, mas eu não os conhecia.
Eu queria me formar no campo da História para além de colocar o circo dentro da academia. Os vários cursos que eu fui fazendo,foram me informando e me formando como é que eu ia trabalhar com aquele material que eu já tinha coletado, como que eu tinha que acrescentar, aprofundar outros materiais, pesquisar diversos tipos de fonte. E pesquisar circo exige isso! Durante a graduação eu fui elaborando o meu projeto de pesquisa do mestrado. Eu tive muita dificuldade com as fontes orais. Eu não faço História oral. Eu faço processos históricos com fontes orais. E alguns setores da universidade não consideravam as fontes orais como fonte.
E eu fui pra fonte já com uma coisa formada, formatada na minha cabeça. E isso é um risco muito grande! Quando você vai armado, já “sabido” para a pesquisa,você comete equívocos históricos incríveis! Desde o final da década de 1970, com a Academia Piolim das Artes Circenses (SP), havia um buchicho que tinha uma escola de circo fora da lona, fora dos grupos familiares e que diziam que os que formaram aquela escola eram traidores. Havia disputa ali, fora da academia. Esse é um momento de debate, de disputa muito séria, entre os circenses itinerantes de lona e esses circenses que montaram a primeira escola de circo fora da lona. Esses circenses foram os que, na década de 1940, 1950, pararam nas cidades para os filhos estudarem. Esses circenses, ao se fixarem numa cidade, vão fazer parte de uma militância política muito forte, a partir da década de 1970, que dará origem às comissões de cultura. E começam a pensar numa escola de circo.
Nesse momento em que eu começo a fazer a pesquisa, havia uma disputa muito grande de que o circo só se aprende no circo, no grupo dos familiares, do que é o circo “puro”. E que o circo-teatro tinha feito a decadência do circo. E isso pra mim era tão lógico, que eu fazia a pergunta, já respondendo. Quando você entra em contato direto com as fontes, você vai descobrindo como ir fazendo a pesquisa. E aí eu fui percebendo o quanto eu estava equivocada sobre a produção histórica circense, o quanto eu não podia ir armada com conceitos. Comecei a olhar para esse passado, não como um passado morto, mas como um passado vivo. Está formatado que pedagogia e metodologia só têm em um lugar. E para mim isso foi se transformando. Quando eu comecei a olhar esse passado vivo, fui vendo o grau de competência, de metodologia, de pedagogia ali. Paulo Freire já dizia que produção de conhecimento, produções educativas, produções pedagógicas, se faz em qualquer lugar. Nós estamos aprendendo o tempo inteiro, ensinando o tempo inteiro.
Então, eu chego no final do mestrado e digo assim: o circo itinerante de lona era uma escola única e permanente, até a década de 1950.
Pesquisar com fontes orais, já era um problema para mim dentro da universidade. Passei pelo mestrado em que, para além das entrevistas, eu fui desburocratizando em relação à questão temática. E começo a me perguntar: e o que que para eles significa tradicional? E listei muitas coisas, era toda uma mistura, toda a produção de conhecimento artístico deles, não se encerrava neles mesmos. A porosidade para fora da lona era enorme! Amplio a pesquisa para as fontes musicais, fotográficas e bibliográficas. E até a ausência é uma fonte importante. Por que será que não se fala? Qual a disputa de memória que está tendo aí?
No doutorado, eu pesquiso sobre Benjamin de Oliveira e a minha frente de pesquisa ampliou significativamente. Eu vou para os jornais do século XIX, pesquiso 20 anos de jornal, vou pro CEDOC para pesquisar fonte, amplio. Quando você pesquisa produção cultural brasileira e vai pesquisar nisso, Circo, você não pode não pesquisar a economia do período, com quem eles estão dialogando e com quem eles estão disputando, a história do Teatro naquele momento, do Cinema, do Rádio, da Televisão, da Música e das festas populares, porque tudo aí está o circo. Não como coadjuvante, mas como protagonista. Quando você faz isso, você amplia e mostra essa complexidade. O circo sempre trouxe para dentro dele o que está fazendo sucesso. Um problema sério é você ver hoje o que se estava produzindo,com uma mentalidade de pesquisa formatada, já sabendo a resposta, não precisa nem pesquisar. A fonte quando é “torturada”, revela tudo. Ela vai olhar do jeito que você colocar. Quando você já vai formatado, vai com o conceito representação e perde tudo que é vivo, que aconteceu desde 1700 até hoje, perde a riqueza que é essa produção e esse intercâmbio que existe o tempo todo. Os circenses que fundaram a escola, tiveram que se reinventar totalmente. Eles não eram mais os circenses lá do itinerante, tiveram que aprender a ser professores de circo de pessoas que eles não conheciam. E não era um processo permanente de aprendizagem. Eles tiveram que se reinventar. Eles são tão novos quanto os novos alunos que eles estão ensinando. Mas eles vêm com uma carga de herança importante de saberes e práticas. Eles têm saberes e práticas sobre os corpos, sobre os processos de formação de corpos circenses. Mas eles também vão aprender com esses novos alunos, em diálogo permanente com processos herdados e inventado nos encontros, nos saberes, a pesquisa fica formatada no conceito representação. Você tem que se preparar para o imprevisto, para a surpresa. É na vivência do encontro que você vai produzir experiência, vivência e depois produção de conhecimento.
Eu não preciso que o circense saiba que ele faz pedagogia. Não preciso pegar esse conceito e enquadrar lá no que o circense faz. O que eu sei é que eles produzem conhecimento, eles realizam pesquisa, eles têm um processo de conhecimento sobre os corpos, eles tem um processo de conhecimento sobre as cidades, sobre a arquitetura. Você pode até não gostar do espetáculo, mas isso é um julgamento de valor, mas eles têm produção de pesquisa e conhecimento permanente.
Tem muita gente que acha que não pesquisa. Vocês pesquisam o tempo inteiro. O próprio corpo, o encontro que ele tem com esse saber, o corpo vai produzindo conhecimento, o corpo produz conhecimento. A produção a partir do encontro, da vivência, da experiência é muito bonita. A gente que é pesquisador tem que ir com o não saber. No encontro com a fonte, você vai aberto para aprender o que é aquilo, o não saber. É um encontro de não saberes. Quem disse que sua vivência e experiência não tem validade? É claro que você tem que colocar de uma forma de uma pesquisa que não fique só no achismo, de uma forma deletéria, tem que conversar com outras fontes. Não é trazer a fonte, falar que o que estou falando é verdade porque fulano diz. A fonte tem que estar no diálogo, inclusive fazer críticas à fonte bibliográfica a partir do seu trabalho e da sua pesquisa. Quem é que fala que não é? Quem discursa que não é pedagógico e metodológico? O errado é acreditar que somente o que está na academia é legítimo e válido. É necessário desvincular este conceito do que é da academia é o padrão. Nem sempre as metodologias e pedagogias que compõem os grupos populacionais vão necessitar da sistematização da academia.
¹ www.circonteudo.com/ - o portal da diversidade circense é uma biblioteca virtual de acesso livre.
² Grupo de estudo e pesquisa das artes circenses da FEF/UNICAMP, vinculado ao diretório de grupos de pesquisa no Brasil (CNPq) Formado em fevereiro de 2006, o Grupo CIRCUS vem realizando estudos, pesquisas, publicações, projetos de extensão universitária, orientações (dissertações e teses), eventos e projetos de iniciação científica relacionados com as atividades circenses e suas relações com a Educação Física.
Ermínia Silva possui graduação em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1980), graduação em História pela Universidade Estadual de Campinas (1993), Mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1996) e Doutorado em História da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas (2003). Autora de dois livros: Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil (Altana, 2007); e Respeitável Público... o circo em cena (junto com Luiz Alberto de Abreu) (Funarte, 2009).Desenvolve atividades de formação e de pesquisa na Escola Nacional de Circo - Funarte (RJ); Co-coordenadora do Grupo Circus - FEF-Unicamp. Professora Convidada do Programa de Pós-Graduação em Artes, Mestrado, Disciplina: Tópicos Especiais, Área de Concentração: Artes Cênicas, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita - UNESP. Professor Responsável: Mario Fernando Bolognesi, de 2011 a 2013. Coordenadora, junto com Daniel de Carvalho Lopes do site www.circonteudo.com.br que tem um vasto banco de dados sobre a arte circense no Brasil e que tem sido referência, inclusive, para trabalhos acadêmicos no campo da história da cultura e das artes cênicas Tem experiência na área de História, com ênfase em Cultura, atuando principalmente nos seguintes temas: circo, circo-teatro, artes cênicas, cômico, teatro-filosofia e formação de ator. Vem produzindo conhecimento na interface entre a história do circo, com ênfase no Brasil, e a construção da memória, científica ou não, da produção cultural na sociedade brasileira, em particular do século XIX até hoje, no XXI. Tem debatido de modo produtivo sobre a produção do circo-teatro no Brasil e os estudos acadêmicos brasileiros sobre o teatro, a música, o rádio, o cinema e a televisão, utilizando-se da teatralidade circense como analisador dessa construção.
que presente esta entrevista incrível... viva pra sempre Ermínia Silva, obrigada.... 💜
Fantástica essa pesquisa sobre o circo feita pela autora Ermínia Silva.