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A MÁSCARA BRANCA COMO DISPOSITIVO CRÍTICO NO TEATRO NEGRO

Por RIKELLE RIBEIRO


Fotografia: Pablo Bernardo


Essa é a foto da cena Buraco Saudade, apresentada na Segunda Preta.

Em cena estão: Michele Bernadino, Ana Martins e eu.

Nessa foto, eu e Michele brincamos de ser mais claras ainda e vestimos um máscara branca para ser as Claras. Ana tenta muito alcançar nossa claridade, mas não consegue.

No final, Ana esparra todo mundo e revela que não somos brancas, ficamos chocadas e chatiadas e começamos um quebra pau. 

 A cena continua, mas não dá pra contar.

Isso tudo pra falar que: foi essa cena e as outras que venho assistindo e fazendo que me fizeram pensar nesse texto.

 

O teatro é a arte do encontro. Por isso, os corpos ali presentes são fundamentais para que este encontro, com o outro, se efetive. Há pluralidades de gêneros teatrais e de corpos que o fazem, mas, durante o percurso histórico, o teatro branco europeu foi privilegiado na narrativa pedagógica e ainda hoje, nas universidades e nos cursos livres e técnicos, os estudos sobre teatro concentram-se na história do teatro branco-ocidental, pelo menos é o que podemos observar no cursos de teatro da UFMG[1](considerando o curso técnico e a graduação em teatro). Sendo assim, temos contato não só com o ponto de vista europeu e norte americano de arte, mas também com o seu ponto de vista sobre o mundo.


Para além de ser afirmar como arte do encontro, o teatro - nos ensinamentos de Augusto Boal - também é arma muito eficiente. Concordando com a afirmativa de Boal, precisamos também considerar que essa arma pode ser utilizada para diversos fins.

O teatro também teve seu papel como ferramenta de guerra, nesse caso utilizado para contribuir com o epistemicídio, esteve a serviço da ação de colonizar, então tinha como objetivo catequizar, e impor novos comportamentos e modos de viver/ser, e assim assassinar a língua, cultura e religiosidade dos povos indígenas que aqui já estavam, e dos negros que foram sequestrados e trazidos para o país.


Sobre o teatro brasileiro e a participação do negro nesse momento do Brasil, Tavares afirma que:


Num levantamento inicial verificamos que o negro no teatro brasileiro pode ser examinado a partir de distintas dimensões: utilização de formas, fundadas em princípios negro-descendentes (como fizeram os jesuítas, por exemplo); participação, seja em manifestações espetaculares populares, seja nos palcos, de modo camuflado (usando maquiagem para esconder a negrura); como tema e argumento dramatúrgico; como autor e/ou colaborador na criação das obras. (TAVARES, p 24, 2010)


De acordo com Tavares (2012), nessa primeira fase do teatro brasileiro, era possível ver atores negros nessas manifestações artísticas que, com o passar dos anos, deixaram o cunho religioso para temas “profanos”. É importante ressaltar que, nesse momento, os atores negros muitas vezes se pintavam de branco para esconder a cor de sua pele. A autora afirma que, na segunda metade do XIX até as primeiras décadas do século XX, a presença de artistas negros foi diminuindo, mas continuou presente na dramaturgia.


A partir das leituras de Mendes (1982), Tavares (2010) nos mostra que o sujeito negro estava presente nessas peças a partir do olhar do branco, sendo assim sua representação era desumanizada a partir do estereótipo racista que lhe era atribuído. A autora afirma que: “essa visão limitada no teatro não só restringiu o espaço de atuação desses artistas, mas também atingiu o Ser negro como um todo, pois este passou a carregar o estigma de eterno escravo e subalterno para toda a sociedade”. (TAVARES, p.27. 2012)


É preciso atentar para reprodução desses estereótipos e as várias estratégias em que ele aparece. Ressalto aqui o “blackface”, uma técnica de mascaramento racista, em que atores brancos se pintam de preto para representar a ideia que eles têm do que é ser negro. Nesse trabalho, essa técnica leva a qualidade de racista, porque através dela foram perpetuados estereótipos sobre uma raça. Ali, o sujeito negro era representado como estúpido, ingênuo, depravado, violento, hipersexualizado e dependente.

Essa técnica racista teatral surge no século XIX nos Estados Unidos e não se restringe somente ao teatro, podendo ser observada no circo, no cinema, em festas populares e na televisão. A utilização dessa máscara começa a diminuir na década de 60, com o crescimento do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, mas o seu uso ainda é presente na contemporaneidade. Hoje, essa manifestação racista na arte também é acompanhada de manifestações de denúncia, como vimos em 2015 no Instituto Itaú Cultural, na divulgação da peça “A Mulher do Trem” da Cia Os Fofos Encenam de teatro. Essa companhia teve a peça cancelada após as manifestações contra o uso de blackface e houve um amplo debate sobre a representação do negro.



O teatro negro, na contramão do desejo da branquitude de retirar corpos negros do palco, de perpetuar práticas racistas e de clarear a histórias do teatro, invoca para o contexto teatral as histórias que são silenciadas, o modo de fazer, o corpo negro em sua amplitude, com seus conhecimentos, ancestralidade, questões e necessidades. Vemos, aqui, o teatro como arma.


Em 2016, houve uma grande repercussão em relação a esse tema, quando Luanna Teofillo criou uma personagem chamada Lolo - A paneleira, Teofillo descreve sua caracterização:


A bolsa Channel para lembrar os dias em Paris (lugar muito superior a São Paulo), a camiseta vintage da seleção herdada do avô militar e a panela na mão como símbolo de sua indignação. Lolo está indignada com tudo o que está aí, mas não sabe exatamente o que é esse tudo. Ela bate panela na janela para mudar nosso país. Lolo não é racista, mas acha que lugar de moreninho não é na universidade ao seu lado, pois cada um deve ficar no seu devido lugar. As flores no cabelo mostram um certo clima hippie chic, afinal ela quer paz e amor com o apoio do aparelho policial do Estado para defender seu patrimônio e os seus.


Podemos observar essa prática em outros espetáculos e dramaturgias, como Blackoff[2], o mascaramento aqui observado consiste em uma atriz negra com uma máscara branca a partir de uma perspectiva crítica, a fim de denunciar os privilégios e atitudes racistas perpetuadas pela branquitude.


Assim, podemos observar que os atores negros assumem a crítica ao branco não apenas direcionado ao seu fenótipo, mas estão atentos em revelar as práticas de opressão e privilégio desse grupo social. Teofillo é questionada em sua ação, perguntam-na se essa máscara branca é um “whiteface”, ela responde:

Não existe whiteface. Não existe movimento artístico grotesco, em paralelo ao blackface, que sirva apenas para fazer rir a partir da humilhação e degeneração de pessoas brancas. Não existe escola teatral ou artifício cômico que se utiliza desse artifício grosseiro para discriminar o branco e sua cultura. Brancos não sofrem racismo. Brancos não sofrem preconceito por serem brancos[...] O problema da Lolo vai muito além de ser branca, é seu caráter, sua ideologia e sua posição social.


A atriz Ntando Cele, que também usa a máscara branca em seu espetáculo Black Off, responde quando questionada se há uma relação entre pintar a pele de branco e o blackface:


Não. Não há equivalente ao blackface. Blackface era sempre para fazer rir de alguém por status inferior na sociedade. “Whitefacing” debocha sobre o privilegiado, é um espelho. Mas é inofensivo se comparado com a humilhação e a história do blackface.[3]



A partir dessas falas, escolhi abordar essa ação recorrendo às noções de mascaramento e máscaras brancas e não nomeá-las como “whiteface”, uma vez que ele poderia causar um entendimento de simetria entre as práticas, o que não é possível pensar quando se trata de racismo.


Para tratar da máscara branca como dispositivo crítico precisamos compreender outra qualidade de máscara, aquela abordada por Franz Fanon em seu livro “Peles negras, máscaras brancas”. A partir das leituras de Fanon (2008) e Souza (1983), podemos afirmar que o sujeito negro em uma sociedade branco-racista percebe o tornar-se branco como porta de saída da sua condição de subalterno.

É preciso lembrar que esta é uma condição fabricada. Fanon (p.90, 2008) afirma que “o racista cria o inferiorizado”, sendo assim como afirma Santos (1983,) em uma sociedade racista o torna-se branco significa torna-se gente.


O professor Westermannn, em The African Today, escreveu que existe um sentimento de inferioridade entre os negros, principalmente entre sob “evoluídos, que eles tentam permanentemente eliminar. A maneira empregada para fazê-lo-acrescenta- é frequentemente ingênua: Usar roupas europeias ou trapos da última moda, adotar coisas usadas pelos europeus, sua formas exteriores de civilidade, florear a linguagem nativa com expressões europeia, tudo calculado para obter um sentimento de igualdade com o europeu e seu modo de existência. (FANON, p.40, 2008)


As ações descritas acima são pistas da maneira pela qual a máscara branca se materializa no cotidiano. Considero que o blackface e a máscara branca revelam o ponto de vista da branquitude (sobre si e sobre o outro), fazendo delas a manutenção de seus privilégios.


Essa visão limitada no teatro não só restringiu o espaço de atuação desses artistas, mas também atingiu o Ser negro como um todo, pois este passou a carregar o estigma de eterno escravo e subalterno para toda a sociedade. Significativamente, o mal causado por essa construção deturpada da imagem do negro se dará por longa data. De fato, ainda hoje, sem nenhum esforço, podemos sentir os ecos desse mal (TAVARES, p. 27, 2010)



Sendo assim, podemos afirmar que a máscara branca é esculpida pela própria branquitude e é construída para não encaixar em um corpo negro, mantendo, assim, uma relação de hierarquia e dependência. É possível compreender que a necessidade de vestir essa máscara está ligada à tentativa de recuperar a humanidade (FANON,2008) e ascender socialmente (SANTOS,1983). Fanon (2008) indica que é preciso que aconteçam dois movimentos: que o branco se repense e que o negro recuse o papel de inferiorizado.


Considero que a ação crítica de vestir a máscara branca pode caminhar em direção aos movimentos citados por Fanon. Assim, racializa-se a branquitude e suas ações em uma perspectiva crítica, nega a cristalização do ser negro em um estereótipo racista e problematiza sua relação com a branquitude. Quando sujeitos negros (atores ou não) se vestem de branco para ironizar e questionar o status quo da branquitude, vemos um sujeito que nega o dispositivo da máscara branca para lhe oferecer uma salvação de sua negrura. Nessa situação, não há mais a identificação com o estereótipo racista criado pela visão branca e nem a idealização da branquitude.


 

[1] Além do currículo do curso podemos confirmar essa afirmativa pelas narrativas dos alunos negros formados nessas instituições, em seus trabalhos de conclusão de curso Michele Bernardino, Anderson Ferreira, Ana Martins, Anair Patrícia, Cleiciane Mendes, Felipe Olivera e Guilherme Diniz analisam criticamente a relação de ensino dentro e fora da graduação em teatro a partir das suas experiências como alunos, atores e professores de teatro e nos mostram que a história negra é silenciada nesses espaços, quando ela aparece é por demanda e inciativa dos alunos.


[2] Sinopse do espetáculo: A performer Ntando Cele assume o seu álter ego Bianca White, uma apresentadora viajante do mundo que julga ter um conhecimento profundo sobre negros e quer ajudá-los a superar a sua “escuridão interior”. Ativando reflexões sobre a humanidade, o pensamento racista vai se revelando no palco com uma construção que limita a visão do outro. Estereótipos de mulheres negras ganham a cena na tentativa da artista descobrir como o público a vê, numa experiência provocadora capaz de nos fazer mergulhar no que habita em cada um de nós. Mulheres negras podem ser identificadas como artistas ou a raça e o gênero são o que as classificam prioritariamente em qualquer coisa que façam? - Retirado do site do Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte - 2018/

[3] http://www.horizontedacena.com/tag/ntando-cele/ Acessado última vez 01/12/2018 às 13:30

 

Referências

  • FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

  • FANON, Frantz.Os condenados da terra. Rio de Janeiro: CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 1968

  • NASCIMENTO, Abdias. Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões. Estudos Avançados, 2004.

  • SOUSA, Neusa Santos. Torna-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1983.

  • TAVARES, Evani Lima. Um olhar sobre o Teatro Negro do Teatro Experimental do Negro e do Bando de Teatro Olodum. CAMPINAS, 2010

  • TAVARES, Evani Lima.Teatro negro, existência por resistência: problemáticas de um teatro brasileiro. Repertório, Salvador, nº 17, p.82-88, 2011.

 

Rikelle Ribeiro é atriz, professora de teatro, pesquisadora de uma educação pluriversal e mestre em educação pelo mestrado profissional da FAE-UFMG. Trabalha a partir do teatro negro,  rua, filosofia africana e do brincar. Tentou produzir sua primeira peça e festival de teatro quando tinha, mais ou menos 10 anos, e deu terrivelmente errado. Hoje, ainda não produziu nenhum festival, mas é diretora de algumas peças por aí. Ela, que sou eu,  ama construir dramaturgias no processo criativo e fanfics.


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