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A TUDO QUE NÃO VEMOS: Rubro um possível estado de dança

Atualizado: 31 de ago. de 2020

Por Fabrício Trindade


Isto não é um texto. É uma chispa. Uma partícula incandescente solta de um corpo em brasa. Uma faísca que deseja encontrar-se com climas e tempos secos, para nos terrenos áridos produzir grandes incêndios. Como fagulhas, que incitam queimadas para renovar a vida no cerrado. Como raios no sertão. Essas palavras-corpo se constroem ardentes e querem, ao entrarem em combustão, desestabilizar sensibilidades, atitudes, modos de se fazer arte. Elas são palavras praticadas, amantes da trama que se desenvolve no processo criativo, e que valorizam “um saber que nasce do fazer (...) contra qualquer tentativa de canonização de sua terminologia” . Faíscas reflexivas que se colocam desenhadas nessas “peles de imagem tiradas de árvores mortas”, pois são parte fundamental do conhecimento experimentado por mim ao orientar a criação coletiva do exercício cênico Rubro – Vestígios breves de alguns dias, obra artística resultado do percurso da disciplina Dança Cênica que lecionei para a turma do Segundo ano do Teatro Universitário da UFMG no segundo semestre de 2018.


No início do semestre, mais precisamente, no mês de agosto a Diretoria de Ação Cultural da Universidade Federal de Minas Gerais abriu uma chamada para selecionar alunos de pós-graduação da UFMG para atuar como bolsista em encargos didáticos no Teatro Universitário (UFMG). Essa ação era uma contrapartida do Programa de Professor Residente do Campus Cultural da UFMG na cidade de Tiradentes/MG. Participei da chamada e fui selecionado para dar aulas na disciplina relacionada à expressão corporal e técnicas de dança, para a turma que estava no Segundo Ano de formação. Integravam esta turma as alunas e os alunos: Alessandra Alixandrino, Alice Oliveira, Alisson Oliveira, Andresa Delmondes, Ariane Lazário, Bruno Gusmanini, Camila Nascimento, Carolina Lobato, Daniele Amaral, Delaney Junior, Militani Souza, Fabiana Santana, Fabiola Moura, Gabriela Freitas, Jack Diniz, Jéssica Pierina, Marina Barros, Rebeca Hornhardt, Saulo Rodrigues, Flor Bevacqua, Gracielle Prado, Thais Oliveira.

O plano pedagógico da disciplina era desenvolver um processo formativo, durante um semestre, que priorizasse práticas corporais ancoradas na dança moderna. Essa metodologia de trabalho corporal seria um caminho para ampliar as possibilidades técnicas do ator por meio da construção de células de movimento e para sensibilizar o aluno “para que o mesmo possa entender e corporificar um estado de dança”.

Diante dessa proposta curricular, subitamente, comecei a questionar-me a partir das ideias que circundam as palavras: técnica de dança moderna, entendimento, corporificar e estado de dança. Como potencializar, desenvolver e ampliar, em cinco meses, a compreensão corporificada de um “dançar”? Quais seriam as escolhas metodológicas, coerentes com as historicidades e espacialidades das alunas e dos alunos, que efetivariam essas noções ao longo do processo de formação artística no semestre?

Em sua obra Teatro latino-americano em diálogo: produção e visibilidade (2016), assim como em seu artigo Como pensar o político no interior do campo teatral? (2016), a autora, Sara Rojo, desenvolve algumas ideias sobre as configurações estético-políticas que constroem e estabelecem coerência isonômica entre o pensar e o agir de uma prática cênica teatral. Segundo a autora, esses apontamentos não têm a pretensão de construir verdades, mas são como coordenadas para disparar dardos e estimular propostas. A reflexão de Rojo estrutura-se em alguns tópicos fundamentais para refletir sobre as bases que quaisquer produções artísticas, no campo das artes cênicas, não poderão se furtar. Destaco dois tópicos importantes:


  1. Produção - As maneiras de realizar uma obra envolvem determinadas éticas de produção (JAMESON, 2013, p.75). Não é viável pensar que, com uma estrutura de produção baseada na sociedade de consumo, poderemos transformar os valores desta sociedade. Portanto, “o que fazemos” está relacionado diretamente com “o que somos”, isto é uma questão ontológica. [...]. Como se estabelece a divisão entre as partes componentes do todo define tanto o processo de criação quanto seu resultado e é neste lugar que se encontra o político. Não é viável acreditar que uma estrutura hierárquica e conservadora possa gerar um trabalho renovador e revolucionário. Esse trabalho exige uma procura por formas de interagir democráticas e efetivas.

  2. Imagem/visibilidade – [...] assumir que trabalhar com determinadas imagens que envolvem certas questões é excluir outras, que as visibilidades sempre geram invisibilidades e que esta escolha não é ou não deveria ser arbitrária é uma questão artística, mas também ética. [...] entendo que o artista vive num tempo e num lugar determinados e não deveria se abstrair deste fato, das pulsões comunitárias que o envolvem.

Por sua vez e em consonância com a autora Rojo, o filósofo francês Rancière (2005) definiu como partilha sensível o recorte político que configura meios próprios de existência, resistência e visibilidade. Este modo de se fazer possibilita a existência de distintas criações geradas por deslocamentos, a fim de eclodir, infinitamente, outras possíveis possibilidades de se relacionar com o mundo. Portanto, a autora reconhece a natureza política inerente à arte, assim como compreende que esta tem um caráter social e ético inescapável. As escolhas de funcionamento internos de uma prática artística influencia, modifica e interfere diretamente nas temáticas, nos discursos, nas dramaturgias, nas estéticas cênico-teatrais, enfim, no resultado de suas obras. O fazer arte é implicar-se e intervir, construindo uma política para re(e)existir ao extermínio de subjetividades, de si mesmo.


Afluxo: ato ou efeito de afluir, grande quantidade. Fluxo: ato ou efeito de mover. A agitação enxerga a matéria leve, sinuosa, rítmica. O corpo desloca. A mente desloca. Volto, existo, movimento. Observo os olhos que flagram paisagens efêmeras que em um clique podem se tornar eternas. Vou! Suor, dor, cãibra, caio. Sou: significado de Ser, possuir identidade. Dou minha palavra que vim sendo, construindo, nesses meses últimos, minha identidade. E vou, vou continuar indo pelo tempo. Me interessa viver! E viva, dou minha palavra que morro a cada instante, a cada soluço. Jéssica Pierina, Livre, inspirada, desafiada, bem.

Rubro foi construído assim, sem a pretensão de responder perguntas anteriormente feitas e sob o princípio de encontrar o equilíbrio (não homogêneo, mas democraticamente vivo) entre o discursivo e a ação, entre as ideias imaginadas e a realidade vivenciada, entre os métodos formatados e as distintas formas de potencializar a expressão subjetiva de cada aluna-artista, aluno-artista e eu, orientador-artista, aos experimentá-los.



A estruturação dramatúrgica do exercício cênico, apresentado no dia 10 de dezembro de 2018, foi realizada, coletivamente, durante o mês de novembro. Para essa construção partimos das pequenas criações e vestígios de todas atividades realizadas nas aulas durante os três meses antecedentes (agosto, setembro e outubro) vividos às segundas-feiras, de 19h às 22h40. Nesse período, praticamos intensamente sequências de treinamento físico, composição de partituras corporais, improvisações, exercícios de rítmica corporal, criação de movimentos e cenas, ampliação de repertório cultural pesquisando trabalhos e práticas de outros artistas. Foram horas regadas a suor, imbricadas na confusão entre números e pernas, tensionadas em debates que se transfiguravam no silêncio caótico da criação artística. E, sobretudo, horas dedicadas ao teste, à experimentação e à repetição de técnicas corporais já legitimadas pelas artes da cena, como as proposições de Rudolf Laban e Renato Ferracini, que, continuamente em nossas vivências, foram ressignificadas, subvertidas, rejeitadas e/ou reiteradas. O corpo lançado no espaço.


Esses corpos não foram tomados sob o julgo de modelos euro centrados ou de performatividades normativas, mas como o centro do pensamento reflexivo e da ação discursiva, ao buscarmos desenvolver uma prática artística significante, sobre si (consigo) mesmo e com o outro.



Uma prática artística que permite a existência de corpos falantes com distintas e diferentes posições de enunciação, que renuncia a igualdade e rejeita a conformidade entre os corpos, proclamando uma equivalência destes ao se comprometerem com a busca do saber, do prazer e do reconhecimento e expressão de subjetividades e afetos. Rubro foi se constituindo por meio de suas vistas miradas a tudo que não se vê e que, para ser visto, prescinde os olhos abertos.


Ao anúncio da tormenta; / à revoada de um bando; / à travessura das nuvens; / ao fim do açúcar, da pasta de escovar dentes. / Às calças ruindo; ao calor; à chegada de um sentimento. / a tudo que não vemos... / à sombra; às janelas de todas as casas que já foram logradouro, remetente, predicativos sem sujeitos ou substâncias. / Ao preço nos mercados; / como surgem os domingos; como iniciam as formigas. / Ao nascimento dos sobrinhos; / ao embranquecimento dos cabelos de parentes. / A tudo que não vemos... / aos documentos que disseram de nós; à saudade que guardam da gente. / À embriaguez; ao tédio se instalando; ao desamor; à descrença de encontrar alguém. / Ao término de um livro; de um copo; de um prato... / A tudo que não vemos quando cedemos à cama; quando não olhamos pra noite, pro alto da vertiginosa noite. [caexistuo], A tudo que não vemos.


As pálpebras que se fecham, o olhar que volta a si e completa seu ciclo, num devir outro, que mira, deseja, se entrelaça pelas veias de sangue quente que se tornam relevo latente no jogo entre os corpos movendo-se pelo espaço. Caminhadas, ritmo, passos em direções diversas, deslocamentos no ar, no chão. Escuridão. Silêncio e tormentas sonoras. Gritos, solavancos, saltos. Agressão e carinho nas peles do tambor, no ruído das cordas de um violino, no sopro de uma flauta doce. Desenhos expostos, coração, história e reflexões também. Todos ali na parede. No pano branco frágil que, de tão mal estendido, quase cai. Um canhão, um peito aberto que o paralisa. Vermelho escorre. Uma canção aguda, dançante, sensual e consagrada. A maquiagem borrada, a peruca embolada, a roupa rasgada. Monalisa, deusa do sorriso, deusa dos sorrisos, do riso, riso, riso, riso. O corpo sagrado, grego, escultural. Frutas, cenoura e cereais. Riso, mais riso, o riso. Um inseto zanzando de um lado pro outro. Um inseto pássaro magistral. Chuva que cai e escorre. A força do tempo, do ritmo, do passo, do canto, da fala. A força de inícios e fins, começos e recomeços, a força das pequenas mortes, a força de Rubro, exercício cênico experimentado como uma peça engrenada na tecnologia da resistência da pesquisa, da educação, das artes, dos afetos, da vida.


Fotografias: Vitor Macedo

 

REFERÊNCIAS

  • KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. Trad: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cia. Das Letras, 2015. 729 p.

  • LIMA, Tatiana Motta. Palavras Praticadas – O percurso artístico de Jerzy Grotowsky. 1959-1974.São Paulo: Perspectiva, 2012. 437 p.

  • RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2005. 72 p.

  • ROJO, Sara. Como pensar o político no interior do campo teatral?. In: Subtexto. Revista de Teatro do Galpão Cine Horto. Número 12. Ano XIII. Belo Horizonte: Galpão Cine Horto, 2016. p. 134 – 153.

  • ______. Teatro latino-americano em diálogo. Belo Horizonte: Javali, 2016. 232 p.

 

Fabrício Trindade é artista da cena. Doutorando em Artes da Cena pelo Programa de Pós-graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Estudos Literários - Literaturas Modernas e Contemporâneas. Literaturas, outras Artes e Mídias da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Licenciado em Teatro pela Escola de Belas Artes da UFMG. Integra o Mayombe Grupo de Teatro, Coletivo Mulheres Míticas e o Mamãe tá na plateia Grupo de Teatro onde desenvolve trabalhos cênicos relacionados às diversas áreas artísticas. Integrou o Grupo Oficcina Multimédia, de 2008 a 2012, desenvolvendo trabalhos como ator, produtor e preparador corporal.


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