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CORDEL É PRA COMER!

Por Gabriel Coupe


À medida que o elevador sobe, é possível distinguir um murmúrio, um pulsar ritmado. Quando as portas se abrem, no sexto andar do edifício Professor Villas-Bôas, sede da pós-graduação da Faculdade de Direito da UFMG, é que se escuta claramente o som da alfaia e do pandeiro, os harmônicos da sanfona e vozes, muitas vozes, uma pequena orquestra de vozes masculinas e femininas, ora melodiosas, ora grotescas, que vibram e pulsam, ainda que abafadas pelas divisórias que proliferam pelo andar. Ao entrar na sala da trupe, instrumentos musicais, bonecos, máscaras, figurinos, cartazes de espetáculos e pinturas pelas paredes explodem em cores quentes, demarcando uma quebra e descontinuidade da arquitetura pré-moldada de pisos e divisórias. Então, faz-se silêncio e uma voz se destaca e faz vibrar o piso do andar. Sua assertividade é marcante, as palavras são escandidas com calor. É a fala do mestre demonstrando o jogo das personagens, fazendo vozes e trejeitos dos tipos e asseverando acima de tudo o primado da palavra, o valor da cultura oral, pela correção da intencionalidade e da dicção. Habitando esse espaço, estão os estagiários e pesquisadores da Trupe a Torto e a Direito, orientados pelo professor Limoeiro.



Fernando Limoeiro. Belo Horizonte/MG, 2018.


Fernando Limoeiro criança. João Alfredo, 1958.

Fernando Limoeiro (Limoeiro) nasceu em João Alfredo/ PE no ano de 1951, filho de família simples, mãe enfermeira e pai funcionário público. Antônio Melo, avô do autor, havia plantado uma árvore na porta de sua casa e essa árvore por alguma razão gerou um conflito com o padre encarregado da paróquia de João Alfredo. Este, junto com uns seus ajudantes, se aproveitou da noite para conseguir, alta madrugada, derrubar a árvore que o estorvava. No outro dia pela manhã, quando Antônio Melo acordou e viu a obra, parou por um instante, deu fé do feito, não disse palavra, apenas se voltou acabrunhado para dentro de casa. Da próxima vez em que o padre se arvorou na rua principal, o avô de Limoeiro pegou sua espingarda rústica, praguejou e meteu bala – o tiro de espingarda era fragmentado, e não foi letal, mas salpicou o pároco de pedaços de chumbo. Um escapulário parou um dos fragmentos do disparo, motivo pelo qual quiseram beatificar o sacerdote. Antônio Melo, diante do certame, decide então mudar-se com sua família de João Alfredo para Limoeiro/PE, cidade vizinha.



Fernando Limoeiro com 15 anos.


O encanto dos folhetos de feira inquietou o espírito do jovem Fernando, que desenvolveu uma sede insaciável pela poesia.


Limoeiro se isolava horas a fio na biblioteca pública do município, muitas vezes enquanto seus colegas brincavam na rua, ele preferia se entregar à leitura ao abrigo do sol inclemente.

O prof. Limoeiro conta que seu primeiro vislumbre da arte do teatro e da arte, em si, foi no Circo. A forma como Limoeiro narra seu encontro com o circo é especialmente interessante, seus olhos se acendem e quase podemos sentir o cheiro do querosene, o barulho e o odor dos animais – muito presentes nos circos de então:


Primeiro, é o Circo. Tudo meu que eu sei de palhaçaria, as primeiras peças de teatro, são melodramas famosíssimos. O primeiro cantor foi Luiz Gonzaga num Circo. A primeira impressão de um homem cantando no microfone e encantando todo mundo foi Luiz Lua Gonzaga. Então é óbvio que a minha trajetória seria toda ligada à arte popular porque era a minha vivência. Então eu vi o quê? Circo, bumba-meu-boi, mamulengo, ciranda, violeiro, muito violeiro. E aquilo era matéria-prima para mim, era o sonho.


O autor conta que ia à feira com a mãe para ajudá-la e que, quando chegava lá, não queria mais ir embora, pois ficava encantado com os mamulengos, com os repentistas e com um senhor, dono de uma banca na feira que se chamava Seu Manuel Sabelê e que era um poeta de bancada que lia os folhetos de feira na hora. Não se chamavam cordéis nessa época. Naquela região, eram chamados folhetos de feira e esse senhor se especializara na leitura desses. Ele via aquele homem com o folheto na mão, uma dicção e colocação vocal estridente, que ele próprio encontrou, e “que permitia uma emissão que quem estava na redondeza toda ouvia e entendia” e ficava pasmo com as histórias que esse homem contava.


A questão que Limoeiro formula anos depois é: como trabalhadores matutos, que trabalhavam no roçado e muitas vezes estavam ali para fazer escambo de mercadorias, tiravam um trocado para comprar um folheto de feira?

Sobre isso o autor fala:


Sem dinheiro, os trabalhadores vinham para a feira para fazer o escambo: às vezes trocar mercadoria, às vezes comprar o que não tinha na roça. Eu digo, sempre, que não podia faltar: o indefectível líquido querosene, sal, açúcar, farinha. Então, trocavam. E vinham com um saco. Esses homens vinham com um saco, em sua maioria analfabetos, paravam em volta de Seu Manuel Sabelê e compravam, vejam só, o cordel de Seu Manuel. Na minha cabeça de menino, eu ficava assim, enlouquecido com aquilo. Espera aí: o cara não tem dinheiro para comer e compra poesia? Na hora em que eu vi que o homem tem instinto de transcendência, que a poesia alimenta todas as almas, que aquele homem tinha necessidade de encantamento tal qual o meu professor de literatura, é igual. Aquilo mudou a minha vida. O que é isso que transcende ao homem? Era a poesia de Cordel, era a força da arte, era a força da poesia. Então, aquele homem analfabeto ainda comprava, vejam só, poesia para alimentar a sua alma.



Ao ver o trabalhador rural analfabeto abrindo mão de parte de seu soldo para comprar poesia, Limoeiro percebeu que, em suas próprias palavras, “cordel é para comer. Alimenta alma”. Cordel é Para Comer (2012) é justamente o nome de um monólogo de sua autoria, no qual ele vive a personagem Zé Potoca, um palhaço cordelista que lê folhetos de feira e canta loas enquanto zomba da morte e expõe seu coração à plateia em prosa e em rima. Criador e criatura se confundem na trajetória desse artista, que há gerações, incendeia seus alunos e a plateia com a criação humana e poética de um teatro calcado nas formas da arte do povo, do Agreste de Pernambuco ao Sertão Pernamineiro.




 

Gabriel Coupe é ator formado pelo Teatro Universitário da UFMG (2015) e Bacharel em Artes Visuais/Cinema de Animação pela Escola de Belas Artes da UFMG (2012). Mestre em Artes da Cena (2018) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Hildebrando. Estudou atuação e direção teatral em cursos livres com artistas e pedagogos renomados como: João das Neves (BRA), Cacá Carvalho (BRA), Roberto Bacci (ITA) Thomas Richards (EUA), Mario Biagini (ITA), François Kahn (FRA), Mikhail Chumacenko (RUS), Oleg Volyntsev (RUS), Corinne Soum (ING), entre outros.

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