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DA POTÊNCIA DO TEMPO OU SOBRE A CRÍTICA QUE AGORA ESCREVO

Por Bremmer Bramma a partir de “In Sã – O Universo do Rosário em Nós”


Da potência do tempo ou sobre a crítica que agora escrevo. Gostaria de performar a palavra. Performar a palavra seria possível? Gostaria de performar este texto. Ele já não é uma performance? Esta crítica-poema começou a ser escrita em julho de 2020. Um tempo. Ou melhor, antes, lá em 2017. E talvez mais adiante. Escrevo à mão, embora, no exato momento, você, se me lê ou me escuta, percebe as palavras num outro movimento, numa tela, emitindo luz. Estas são palavras que partem de “In Sã – O Universo do Rosário em Nós”, peça-performance com concepção de Anderson Feliciano e Evandro Nunes, trabalho que esteve na abertura da primeira temporada da Segunda Preta, em 2017. Não só por essa, mas por suas apresentações, sua existência e seu processo no mundo, “In Sã” é obra marcada no tempo, na vida e na morte de seu acontecimento.



Foto: Pablo Bernardo

Tenho muitas memórias daquele tempo: 3 anos atrás. Se um tempo passado ou ainda o mesmo, hoje duvido. Prefiro não ter certeza. Antes, tinha certezas demais. Ou talvez ilusões. E, pouco a pouco, vamos aprendendo que a vida é sobre iluminar as sombras. Ir aprendendo isso. Descobrir nas formas rígidas as curvas que façam brotar mar. Ainda vamos chegar ao mar… Cheguei à abertura da Segunda Preta logo após assistir à outra peça, “Rioadentro” (com direção de Lira Ribas, dramaturgia de Raysner de Paula, atuações de Carlos Caetano, Lira Ribas, Rainy Campos, Sitaram Custódio e Thiago Braz), no CCBB Belo Horizonte.


Hoje, percebo que aquele trabalho já estava conectado de algum modo a toda experiência da escrita agora, uma obra a partir de Guimarães Rosa, e também em conexão com as preturas. Lembro-me de descer a Avenida João Pinheiro apressado, junto com Preto Amparo, e chegarmos juntes até a porta do Teatro Espanca lotado. Alexandre de Sena estava ali na porta do teatro, entramos no espaço e “In Sã” acabava de começar. Ou continuar. Aquela performance da vida um movimento do tempo. Um fluxo. Se as memórias são hoje verdade ou loucura, mais uma vez chego a duvidar. Será que sou o mesmo? Não sei. Quais de nós ainda somos?


Azul. Daquela noite, tenho forte a memória das cores e da luz de Valber Palmeira e do próprio Preto Amparo. Da plasticidade. De uma sensação de peça-sensação. Peça-instalação. Do figurino-mar-extensão, assinado por Zora Santos. E também da cenografia-escultura-artesplásticas construída por Marcel Diogo. Tudo isso em diálogo com a obra de Arthur Bispo do Rosário (1909 ou 1911-1989). As palavras que ecoavam naquela noite eram como ruído, música, e ruído como algo bonito, movimentos, ritmos, palavras também livres de sentidos, de significados que aprisionam, que também não consigo recuperar exatamente a memória ou sensação agora, como disse me encantava a imagem, a pintura, me conectava àquele caminho da dramaturgia, e hoje o tempo me permite ler o registro escrito. A peça. A escritura dramatúrgica. Anderson compartilha aquelas palavras comigo, eu vejo um poema, eu vejo imagens, eu crio novos sentidos.


Mais que a obra em si, “In Sã” também são as memórias daquela primeira temporada da Segunda Preta.


Em especial daquela primeira, muitas lembranças, de um espaço do afeto, de um movimento novo, árvore que tanto cresceria, brahmas e prosas no bar Mineirinho, em 2017 eu era tão novo, tão inexperiente, tão disposto ao desconhecido, e em 2020 pareço saber menos ainda das coisas, muitas vezes me percebo ainda mais perdido, ainda mais confuso e inseguro, mas ao mesmo tempo mais parecido comigo, tentando ser mais feliz, mais coerente com o mundo e com o que sinto.

Estamos o tempo todo desaprendendo. Quem foi que disse que é preciso saber tudo, controlar tudo, definir tudo? Hoje mais velho me sinto também mais do mesmo. Mais o mesmo, de antes, lá de trás. Atrás onde? Talvez fugindo no durante, sofrendo, muitas vezes me atormentando, hoje novamente me reconheço. Ou me reaproximo de quem sou e quero ser. De minhas origens. Preciso narrar isso. Resgato a minha criança e sou ela mesma. Quem mais ela e eu poderíamos ser?


Quando o convite pra estas palavras veio, o primeiro movimento começou em 2017. Anderson me convidou pra assistir a “In Sã” naquela ocasião da Segunda Preta e aceitei então escrever sobre aquele tempo vivido. Responsabilidade minha que naquele momento se perdeu no mar… Por que não escrevi antes? Hoje, penso que escrevo no tempo em que foi possível esta existência. Da potência transformada em gesto criativo. Se você me lê, é porque a crítica não mais seria e sim é. Se eu tivesse escrito naquele tempo, este texto seria totalmente diferente. Mas, não será o tempo sempre o mesmo, em suas idas e vidas, ou sempre o mesmo tempo presente, ou radicalmente o contrário, infinitos tempos, único para cada experiência e ponto de vista? Se eu tivesse escrito, mas não era possível. Parece que ele deveria ser exatamente este aqui. E sempre havia sido.


Naquela época, uma nova potência crítica foi escrita por Marcos Alexandre, grande mestre e artista amigo, que muito me inspira, ele também está nesse mesmo fluxo, nessa espiral, nessa reverberação da obra, da vida, que é parte dela. O texto está publicado no site da Segunda Preta e eu o releio. Repito a releitura pra que eu possa senti-la reverberar e reverberar. Embora não haja exatamente um motivo, de 2017 a 2020, vivi momentos bonitos, de criações, amadurecimentos no teatro, nas relações, mas também tempos difíceis. Foram nestes últimos anos que experienciei e percebi em mim momentos de loucura, de culpa, de depressão. Antes eu parecia imune a esses sentimentos, mas essas sombras se expuseram com tudo em meu caminho, ou pelo menos na minha percepção da realidade, que é também tão frágil.


Será possível ser artista e ter a mente sã? Hoje “In Sã” me conecta por um caminho que lá em 2017 ainda estava oculto.

Se o espetáculo parte da vida e obra de Arthur Bispo do Rosário, seus delírios, sua desforma possível inventar o mundo, hoje o tema da saúde mental me é muito mais precioso e profundo. Por vezes me pergunto se algumas cicatrizes na mente vão se curar um dia. Ao mesmo tempo, quem define a loucura, quem determina o normal? Tenho da peça a memória do corpo-performance de Evandro. Essa presença, sua força, sua voz, sua fragilidade, seus músculos, seu mar de órgãos, deixavam evidente uma pesquisa das potências do nosso esqueleto e suas danças naquele processo. Uma lembrança bonita. E que permanece.



Foto: Pablo Bernardo

Continuando este fluxo, esta divagação, mas já se aproximando de um desfecho, ou de uma nova continuidade, ou de uma volta ao passado mais profunda, o segundo convite pra escrita foi feito por Analu Diniz, em julho de 2020, num outro movimento. Um outro contexto. Uma pandemia e um novo tempo no mundo. Um novo desconhecido. Durante e a todo instante, nas telas, nos discursos, vidas negras importam, não basta não ser racista é preciso ser antirracista, teoria cuir, arte, arte, arte…! Este é pra mim um ano de rupturas. De superar a culpa. Por que ainda Duchamp e não a “Roda da Fortuna” de Arthur Bispo? Um tempo reconciliamento com a ação. A ação daquela criança: o mesmo Bremmer de sempre. E o de antes. Totalmente in-são.


Quando Analu me fez o convite para escrever um texto para a Mistura, não imaginava que eu fosse escrever sobre “In Sã”. Mas, me lembro de um dia à tarde, neste mesmo mês de julho, olhar minha mãe dentro dos olhos, uma mulher negra de 76 anos, ver o seu rosto e chorar. Naquele instante voltaram todas as memórias da mulher que cuidou de mim, que me ensinou a ler e a escrever, e que me ensina tanto com os tropeços da vida. Eu não imaginava que fracassaria tanto. Por que continuar neste tempo do certo e do errado? Possível seria o tempo da experiência, do processo, do livre fracassar? Desde que pela verdade e pela vida, mil vezes sim.


Dois dias depois desse dia, fui ao encontro. Ao reencontro. Liguei para Anderson e por mais ou menos uma hora conversamos. Agradeço por essa experiência, por mais essa continuação das nossas histórias. Delas palavras-poemas, anotações, rabiscos, fragmentos. Foi quando fiquei sabendo que o processo de “In Sã” estava completando dez anos. A data me chegou como um sinal. Mais ou menos um mês depois, “In Sã” venceria o prêmio Leda Maria Martins na categoria “Cena em Sombras”. Misterioso é pensar que quando aquela primeira centelha dessa reescrita se pôde pensar, nada disso existia, ainda viria. A gente sente tudo, não é? E se afeta pelos acontecimentos.


Levei mais tempo que poderia, ou gostaria, ou imaginaria, neste processo de escrita. Essa relação com o tempo mobiliza a nossa existência. Levou o tempo que deveria? Importa saber que levou o tempo que é. Penso nas memórias. Penso nos registros. Penso nas memórias que só estão dentro de nós. O imaginário em nós. Penso em tanta coisa. Penso numa espada de São Jorge. Penso. É como uma voz.





* Texto escrito em outubro de 2020


 

Bremmer Bramma é ator, performer, escritor, diretor, produtor e artista amador de Belo Horizonte (MG). Um amante do teatro e da cena, é integrante dos coletivos artísticos Casa Anômala e Plataforma Beijo. Como criador, assina a direção e a co-dramaturgia da peça “Protótipo para Cavalo: Corra, Aisha, Corra!”, com a atriz Aisha Brunno, e o roteiro da websérie "Docinhos Mágicos", com Igor Leal e Will Soares. Atua também nos espetáculos "Projeto Maravilhas", da Plataforma Beijo, e "Eclipse Solar", do Grupo Quartatela. Escreve para o site Confidência Crítica e, em 2021, lança o seu primeiro livro de poemas, "desejo de me expor, desejo desaparecer", em parceria com a Siriguela Criativa.

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