POR MALU FALABELLA
Em casa, tomando meu café e escrevendo esse texto, reflito sobre o que vai ser do futuro. Do teatro pós-pandemia, dos artistas, da minha carreira... Apesar das particularidades desse cenário atual, não é a primeira vez que me sinto assim, insegura, já que enfrento os desafios de uma artista recém-formada. Costumo pensar que a angústia de uma/um artista nunca cessa, toda fase é sempre cheia de questionamentos, inseguranças e desafios. Tenho em mim aquele desejo de prosperar na carreira e, há um tempo, venho refletindo, também, sobre algumas questões: o que leva uma/um artista a ser reconhecida(o) por seu trabalho? O que faz com seja notada(o) por sua singularidade? Quais são os caminhos que a(o) levam ao êxito? Questionamentos comuns entre artistas, com múltiplas possibilidades de respostas e sempre relativas.
Venho observando e investigando essas questões por meio da prática e da troca de experiências, uma investigação em processo e sem resposta definida. Meus caminhos até aqui têm me mostrado que um olhar honesto voltado para si mesmo, o desejo real de expor, inclusive medos, fracassos e vulnerabilidades, são uma potente diretriz para o êxito de uma/um artista. E por mais que pareça óbvio dizer que a(o) artista coloca um tanto de si em sua obra, nem sempre isso é usado de forma consciente, para atingir a potência do que se origina a partir do autobiográfico.
Por isso, venho me interessando muito, em meus processos, pela pesquisa em torno da identidade. Tomo a perspectiva autobiográfica como parte fundamental da criação e como ponto de partida, seja para alcançar um objetivo documental (como no caso do espetáculo Maternar) ou na construção de personagens (como no caso da micropeça Horizonte Infinito). A fim de contribuir para a pesquisa em torno dessa abordagem artística, considero valoroso compartilhar minhas experiências até agora.
Eu me formei em escolas de teatro relevantes de Belo Horizonte, como a Escola de Teatro da PUC Minas, o CEFART – FCS e a graduação da UFMG. Também fiz parte do grupo de formação da Pierrot Lunar, o Pierrot Teen, que aqui menciono com ênfase por ter me apresentado uma linha de trabalho autoral que hoje enxergo como fundamental na minha formação, para que posteriormente eu fosse capaz de guiar processos como do espetáculo Maternar. Com a Pierrot, construí o espetáculo Tudo de Nós (direção de Léo Quintão e Juarez Guimarães Dias), que era autobiográfico e partia de textos e experiências pessoais de cada atriz/ator.
As experiências pessoais, mesmo inconscientemente, sempre fizeram parte de materiais que propus ao longo de processos estudantis e apareceram ainda mais fortes no meu TCC e no primeiro trabalho da Cia Quatro Quartos, o solo Merde! O último espetáculo. É um espetáculo metalinguístico, em que a personagem Manuela, uma atriz de meia idade em crise, conta experiências, compartilha angústias e intimidades, que eu mesma vivenciei, mas com uma outra roupagem.
É na companhia, ao lado das também fundadoras Amanda Coimbra, Bárbara Batitucci e Gabriella Hedegaard, que venho aprofundando minhas pesquisas acerca do fazer teatral. Formada apenas por mulheres, a companhia possibilita experimentações, trocas e construções coletivas para dar espaço às nossas vozes, e vem encontrando seu lugar no cenário teatral de Belo Horizonte. A Cia Quatro Quartos nasceu do nosso encontro durante o curso de graduação da UFMG. Desde que decidimos trabalhar juntas, estabelecemos um conceito para companhia: produzir coletivamente, com concepção inicial de uma das integrantes. Já ali, estávamos propondo algo que potencializava nossas individualidades e colocava nossa identidade como ponto de partida. Durante os processos, cada uma de nós contribuiria com mais ênfase na área que lhe cabia, pois tínhamos diferentes pesquisas cênicas.
Dessa forma, nosso segundo trabalho foi o espetáculo Querida Cecília, TCC e concepção de Gabriella Hedegaard, depois,Trago sua resposta em 5 dias, TCC e concepção de Bárbara Batitucci. Ao longo de um ano e meio de trabalho contínuo, acumulando experiências nos campos da dramaturgia, da atuação e da concepção visual da cena, essas criações nos conduziram, em 2019, para dois processos que detalho a seguir: o espetáculo Maternar, com concepção de Amanda Coimbra, e a micropeça Horizonte Infinito, construção coletiva da companhia.
MATERNAR
Foto: Mateus Gepeto
O processo de criação de Maternar partiu do desejo de Amanda de falar sobre a maternidade, esse universo tão amplo e complexo. Ela se descobriu grávida no início de 2018, enfrentando os desafios de se tornar mãe de uma menina, Elis. O processo começou com reuniões em que compartilhávamos pontos de vistas e sentimentos sobre o assunto num âmbito pessoal, partindo de materiais reunidos por Amanda.Montamos um mapa temático e passamos por temas como ancestralidade, poder feminino, sexualidade, a invisibilidade da mulher-mãe e a visão social sobre essa mulher; opressão, julgamentos, patriarcado e machismo; a maternidade real e, consequentemente, as dores e as alegrias inerentes a essa maternidade.
Partimos para a prática, fazendo exercícios que visavam despertar a sensibilidade e a criatividade de Amanda. Tínhamos ela, o corpo dela, a vivência dela como referências e pontos de partida para criação. Tivemos também a contribuição de Izza, que guiou exercícios importantes num trabalho vocal e corporal íntimo com Amanda e propôs um olhar sincero da atriz sobre sua própria história, traduzindo-a em palavras, gestos e vocalidades. Para enriquecer o trabalho, convidamos aos poucos mais atrizes para compor a cena ao lado de Amanda: Luísa De Paula, que na época estava grávida, Joana Rochael, Lígea Lana e por fim Bruna Chiaradia. A maioria das atrizes eram também cantoras, um ponto que consideramos relevante para construirmos uma camada vocal potente com Amanda, também cantora.
Nos ensaios, observávamos o que surgia de interessante nos corpos e nas vozes e pedíamos que as atrizes trouxessem músicas ou criassem partituras corporais. Também consideramos importante escutá-las: buscamos entender como cada uma se conectava ou não com o universo da maternidade. Tínhamos uma dramaturgia em construção, indefinida, um campo vasto para adentrar, materiais diversos para investigar e o que parecia unir tudo era a história pessoal de Amanda.
A falta de definição dramatúrgica nos deixava angustiadas e houve um momento crucial que determinou o fio condutor do espetáculo. Amanda trouxe seus relatos pessoais, de gravidez, de parto e de pós-parto. De forma despretensiosa, ela os leu, e suas palavras nos emocionaram de imediato. Aqueles relatos carregavam toda potência que precisávamos como material cênico e para conduzir toda a dramaturgia. A partir disso, o processo começou a fluir, investigamos maneiras de trazer para cena esses relatos por meio de práticas com o coletivo. Reunimos mais materiais autobiográficos de Amanda, como vídeos, fotos pessoais e cartas simbólicas da atriz. Abraçamos também as reflexões de cada atriz criadora, na medida em que ampliávamos o discurso para além da história de Amanda.
Dessa maneira, costuramos a dramaturgia, alcançando um resultado de caráter documental mesclado com uma performatividade coletiva imagética de corpo e voz, passeando por cenas ritualísticas, performáticas, poéticas, narrativas, críticas, irônicas e cômicas. As cenas partem de um relato pessoal de Amanda, como protagonista, e em diversos momentos abordam uma visão macro, sócio-política, criticando a maneira pela qual a sociedade vê e lida com a mulher-mãe, provocando o público a refletir e a se colocar. Maternar se configurou como uma grande colcha de retalhos sobre a maternidade, a feminilidade e a mulher na sociedade, revelando o íntimo e discutindo o amplo, dialogando, denunciando, sensibilizando e desconstruindo. Maternar é um espetáculo real, por isso toca e transforma.
HORIZONTE INFINITO
Foto: Henrique Vilela
Em Horizonte Infinito, o trabalho surgiu de uma proposta fictícia: a relação entre duas irmãs, Joana e Teresa. A dramaturgia foi criada a partir de vivências e de um processo de construção das personagens que aproximava a ideia, ampla e imaginária, do que caracterizava essas personagens, de nós mesmas, as atrizes que as interpretavam.
A princípio, apresentei a proposta,ainda vaga e em aberto, às companheiras da Cia, principalmente à Gabriella, que iria trabalhar do meu lado nesse projeto, como atriz. Trouxe textos e imagens que rascunhavam como seriam essas personagens e a relação entre elas. Teresa, a irmã mais velha, cuidava da mãe doente no Brasil, enquanto Joana, há alguns anos, tinha ido viver num país distante. Desde o início, a intenção era que Gabriella se apropriasse da personagem Joana e eu me apropriasse da personagem Teresa. Dessa forma, Gabriella, na época em Portugal, criou textos e imagens livremente, adotando o ponto de vista de Joana, inspirada pelas vivências dela própria num país distante, e eu criei daqui, adotando o ponto de vista de Teresa.
Naturalmente, as questões das personagens se tornaram nossas, à medida que nos permitiam investigar tais características em nossas próprias vidas e cotidianos. Nossas questões se tornaram delas, ou seja, construímos personagens, desde o início, hibridas. Uma espécie de autoficção. Sob a vestimenta dessas personagens fictícias, Malu vestindo Teresa e Gabriella vestindo Joana, evidenciamos questionamentos, sentimentos, memórias e desejos intimamente nossos.
A busca pela aproximação das questões das personagens com nossos próprios corpos se deu também na forma como construímos a relação entre elas. Usamos palavras que traziam à tona sentimentos e as investigamos em relação uma com a outra. A partir do momento em que nos conectávamos de forma sincera, era uma conexão real entre Malu e Gabriella, não havia nenhuma premissa anterior que ditava como essa relação deveria ocorrer, a dramaturgia estava em nossa função. E para criar o passado das personagens, também recorremos a memórias pessoais, a fotos e objetos antigos nossos. Criamos a história de Joana e Teresa a partir da nossa própria história. Ficção e realidade se misturando o tempo inteiro. Emprestamos nossa identidade, nossas peculiaridades a essas personagens e vivenciamos essa relação.
Todas essas experiências têm me mostrado que existe uma sutileza daquilo que é real e profundo nos acompanhando o tempo inteiro, ao abraçar, desde o início, nossa própria história e identidade nos processos de criação cênica, dando-nos base e força. Nada, ou muito pouco, seria de Horizonte Infinito se não fossem nossas histórias pessoais transpassando a ficção, tal qual em Maternar, se não fosse a disponibilidade de Amanda e o desejo de se desnudar e de se revelar, doando sua história.
Ao entendermos que tudo parte de nós mesmos e de toda complexidade que nos faz sermos quem somos, comprometemo-nos com uma investigação sincera sobre nós mesmas e, simultaneamente, comprometemo-nos a perceber os caminhos possíveis de se revelar, de maneira verdadeira, para tornar a ponte que chega até o outro mais límpida, gerando comunicação, identificação, conexão e reflexão.
Malu Falabella é atriz formada pela Escola de Teatro da PUC Minas (2011) e pelo CEFART, Centro de formação artística da Fundação Clóvis Salgado (2014), com os espetáculos: Esta Não É Uma Peça Infantil (direção: Lenine Martins), e Estranhas Ocupações (direção: Odilon Esteves). É graduada em Teatro pela UMFG e também fez parte do grupo de formação da Pierrot Lunar, o Pierrot Teen, com o espetáculo: Tudo de nós (direção: Léo Quintão e Juarez Guimarães Dias). Integra o elenco da peça Fred e Laura, vencedora do prêmio de “Melhor espetáculo de Comédia” do 5º Prêmio Copasa Sinparc de Artes Cênicas. Em 2017 estreou o solo: Merde! O Último espetáculo, fazendo parte também da dramaturgia e da direção num processo colaborativo da Cia Quatro Quartos. Também pela Cia, trabalhou na direção e dramaturgia das peças Querida Cecília,, e Trago sua resposta em 5 dias; e na direção, dramaturgia e encenação de Horizonte Infinito e Maternar
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