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DESEJOS DE TEATRO

Atualizado: 9 de dez. de 2020

Por Paulo Maffei



“A resposta é a desgraça da questão”

Maurice Blanchot


“Queria que isso fosse uma peça...”

Gertrude Stein




“Queria que isto fosse uma peça...” são as primeiras palavras do texto “Quero que isto seja uma peça” da emblemática escritora estadunidense Gertrude Stein. A meu ver, o título e essa fala inicial são os modos de Stein nos dizer “transforme essa dramaturgia impossível em teatro, por favor”.

Print do um experimento cênico digital "Exercícios Para Dias Estranhos" - Realizado pelos estudantes do alunas/os do Módulo III do Curso Técnico em Teatro do CICALT

Apenas para contextualizar, os textos de Stein rompem com a forma dramática e com os conceitos aristotélicos tão presentes no teatro ocidental, se distanciando de qualquer estrutura fabular que nos indicaria um caminho seguro para a elaboração de um espetáculo teatral. Cabe ressaltar que as dramaturgias de Gertrude Stein foram publicadas em 1922, o que as tornam ainda mais impossíveis de serem montadas, se considerarmos o tipo de teatro que se produzia naquele período.


Acredito que ela nos lança um desafio, mas, também, que está manifestando ali um desejo de que aquilo, aquela escrita, se tornasse uma peça. Se torne teatro.

Desde que fomos obrigados a realizar o distanciamento social, nossos modos de vida e de convívio se alteraram em diversos níveis da vida social. Tivemos que nos adaptar, transformar e reinventar nossas formas de se relacionar com o mundo. Certamente, o dispositivo principal desta reinvenção seja a internet. Passamos a viver ainda mais conectados, tecendo mundos na rede internacional de computadores.


Assim como vimos os comércios, as escolas, as galerias de arte e outras instituições fecharem as portas, também vimos os teatros sendo obrigados a fecharem, bem como os grupos, coletivos e companhias de teatro sendo obrigados a interromperem seus ensaios, estreias e temporadas. Vimos, também, artistas da cena invadirem a internet com os mais variados trabalhos, processos e experimentos, numa tentativa de resistir e existir teatralmente neste contexto.


Neste ambiente, incerto e novo para o teatro – ou nem tão novo assim, uma vez que o uso de alta tecnologia, virtualidade e telepresença não sejam uma novidade para o teatro –


duas dentre outras perguntas começaram a aparecer referente à arte teatral: Seria o fim do teatro? Isso que tem sido feito na internet é teatro?

Print do um experimento cênico digital "Exercícios Para Dias Estranhos" - Realizado pelos estudantes do alunas/os do Módulo III do Curso Técnico em Teatro do CICALT

Tenho visto muitos artistas e pesquisadores do teatro dizerem que essas perguntas “não são boas”, que “não nos levam a lugar algum”, e ainda “que são muito redutoras”. Eu discordo. Não acho que existam perguntas ruins, mas sim respostas ruins. Ainda mais quando essas respostas operam por uma via dicotômica: sim e não, falso e verdadeiro, bom e ruim, etc. Acredito que as perguntas movem pensamentos, nos fazem retomar as origens e as transformações sofridas, além de nos obrigarem a realizar um exercício de revisão sobre algum fato, assunto ou objeto, que por tanto dominarmos, acabamos automatizando nossos entendimentos.


Perguntas nos fazem buscar referências, para tecermos algum entendimento, para tentarmos elaborar uma resposta. Uma boa resposta, na maioria das vezes, não deve ser imediata e, muitas vezes, a resposta seja justamente a busca por responder, ou seja, uma caminhada infinita sem nunca chegar a algum lugar: apenas se mover pela pergunta.


Seria o fim do teatro? Quando olhamos para história do teatro, podemos ver nitidamente que por diversas vezes ele precisou estar em suspensão, tanto por motivos pandêmicos (a peste negra, gripe espanhola etc.), religiosos (a proibição por parte da Igreja Católica na Idade Média por exemplo) e políticos (censura em regimes ditatoriais por exemplo, que, embora não impeçam o acontecimento teatral, interferem na liberdade de criação). Ainda assim, o teatro continuou existindo e inclusive se reinventando. Até mesmo quando do surgimento do cinema, que muitos atestaram como uma ameaça à arte teatral, mais uma vez o teatro não só resistiu como se libertou de algumas amarras e se fortaleceu enquanto linguagem autônoma. Nesse sentido, me parece que temos pistas de que desdobramentos estão por vir, e que dificilmente estejamos próximos da extinção do teatro.


Desde que começamos o isolamento social, ao participar de experimentos cênicos digitais e, também, pensar e realizar experimentos artísticos-pedagógicos, sempre me vinha à cabeça o texto de Gertrude Stein: “queria que isto fosse uma peça”... e eu sempre completava com “queria que isso fosse teatro”... Porque, para mim, é isso que ela estava dizendo: “Transforme essa dramaturgia impossível em teatro” e eu olho ao redor e vejo artistas e professores de teatro “buscando meios de transformar essa realidade impossível em teatro”. Queria que fosse teatro... Esse querer, a meu ver, está no campo do desejo, e desejo é composto de uma rede de movimentos e forças. Tenho pensado, neste momento, que esses diversos experimentos se encontram no campo do desejo, “desejos de teatro”. Acredito que primeiramente por um desejo de criação, de experimentação, mas também de sobrevivência, de gerar renda, de inventar possibilidades – teatro para mim sempre foi invenção, tem que ser invenção.


Isso que está sendo feito pela internet é teatro? Não precisamos responder isso agora, mas me parece importante lidar com a pergunta, tensionar os conceitos, os entendimentos, as certezas, e ir respondendo aos poucos, se permitindo inclusive mudar de opinião.

Neste momento, só consigo pensar em desejos de teatro, assim como Stein queria que a sua escrita fosse uma peça, eu desejo teatro. Meu desejo produz alguma teatralidade nos meus experimentos. Eu desejo teatro, porque estou com saudade dele. Eu experiencio esses trabalhos e desejo que aquilo seja teatro. Enxergo possibilidades teatrais. O teatro possível, as teatralidades digitais...


Gostaria de fechar esse texto com mais duas perguntas que muito têm sido feitas por aí: “Como será o teatro pós pandemia?” e “A abundância de experimentos mediados pela tecnologia e pelo digital se tornará a tônica desse teatro?”


Desde que fomos impedidos de fazer/ir ao teatro, o que mais se reforçou, para mim, foi o quanto a noção de convívio e de presença física no mesmo tempo/espaço são características quase estéticas do teatro. Como se o fato de compartilharmos um mesmo tempo/espaço, antes de considerar os elementos estéticos da encenação, conformaria uma estética própria (não sei se consegui explicar, mas foi a forma que consegui descrever este sentimento... estou tentando elaborar isso melhor). A partir do momento em que não pude mais ir ao teatro, essa ideia de convívio se fortaleceu como uma pedra fundamental.


O teatro não é um objeto estático e enraizado. Pelo contrário, ele reage a vida e se atualiza junto com a gente. Ele é sobre a gente. Nesse sentido, me parece óbvio que o teatro pós-pandemia reagirá a todo esse período, mas acho incerto apontar como isso se dará de fato. Acredito que as impressões mais óbvias, como o uso de tecnologia e a digitalização, bem como a reflexão sobre o isolamento e a solidão nestes tempos, são matérias muito fáceis para se apostar, e o teatro não é fácil. Acredito que existem muitas outras camadas que ainda não são visíveis, que ainda não conseguimos acessar, que afetará as dimensões estéticas e poéticas na arte teatral.


Print do um experimento cênico digital "Exercícios Para Dias Estranhos" - Realizado pelos estudantes do alunas/os do Módulo III do Curso Técnico em Teatro do CICALT

Por fim, aposto no encontro, nos corpos aglomerados em salas de teatro e na rua, numa poética do aqui/agora exacerbada, na força do toque e do abraço, na ritualização de sermos coletivos, do teatro se restabelecendo como lugar de forças coletivas, como lugar de produção da diferença... enfim, esses são meus desejos de teatro. Contudo, se “a resposta é a desgraça da questão” opto por deixar as questões vivas, me movendo e me alimentando delas.


 

Referências


  • BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. São Paulo: Escuta, 2001. 152 p. 43.

  • STEIN, Gertrude. Quero que isto seja uma peça. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. In: O Percevejo: revista de Teatro, Crítica e Estética .ano 8 . N.9 . Departamento de Teoria do Teatro. Programa de Pós-Graduação em Teatro. Rio de Janeiro: Unirio,2000.

 

Diretor, iluminador e performer. Professor e Coordenador do Curso Técnico em Teatro do Centro de Formação Artística e Tecnológica (CEFART )e Professor no curso de graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Atuou como Professor no Curso Técnico em Teatro no Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias – CICALT da Secretaria de Educação de MG e no Curso de Graduação em Teatro da Universidade Federal de São João Del Rey(UFSJ). É Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFOP. Graduado em Artes Cênicas - Bacharelado em Direção Teatral - e em Licenciatura em Artes Cênicas pela mesma Universidade. Ator Formado pelo Teatro Escola Macunaíma (SP).



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