Por Gra Bohórquez
Escrever, para mim, é sobre vomitar. Sobre pôr pra fora, de maneira abrupta e involuntária, o que existe lá dentro e que urge em sair. Por mais que seja um processo doloroso, quando terminado, traz alívio e cura. Pelo menos por um instante. Escrever especificamente para o teatro é desejar que aquelas palavras se transformem em ação. Que rasguem os limites da imaginação e se tornem realidade em um espaço, um palco, diante de pessoas, um público desconhecido.
Blackout
Ela, a insone: antes de dormir, naquele momento em que nossas pálpebras estão pesadas, logo antes de nos entregarmos totalmente aos mistérios do subconsciente, quando fecho os olhos, sinto algo gelado em minha canela. Na nuca, uma superfície áspera, como uma lixa, me pinica. Perto do estômago, algo gelatinoso se arrasta sobre minha pele. Assim que me dou conta dessas sensações, abro os olhos o mais rápido possível e esses corpos desaparecem. Imediatamente. Cabe a mim, então, me manter acordada para que eles não voltem, para que não cheguem até minha boca e me sufoquem. É nessa hora que eu vomito. Das minhas entranhas, saem medos, prazeres, desejos e sensações em forma de palavras.
No ensino formal de teatro, especificamente nos estudos de textos dramatúrgicos, os estudantes têm maior contato com autores homens. Isso se deve ao processo sócio-histórico patriarcal, que suprimiu as oportunidades de indivíduos do sexo feminino e se refletiu na presença das mulheres na arte teatral. Como estudante e como mulher, reflito sobre os registros de dramaturgias femininas tão escassos desde sempre, e sobre a necessidade de sermos lidas e também celebradas; de compartilharmos nossas dores e delícias e darmos as mãos nessa luta diária por direitos e por nossa sobrevivência.
Tento fazer minha parte, leio, compartilho e escrevo mulheres.
Luzes vermelhas.
Ela, a narradora: Estou deitada em minha cama, coberta por um lençol branco, com listras pretas horizontais e um cobertor, fino, marrom, sobre meus pés. Uso um pijama que foi presente da minha mãe, um bem brega, escrito “sweet dreams”, com desenhos de corujas e muitos corações. Ao meu lado, tem um homem. Ele dorme profundamente. Eu o observo, invejando a consciência leve e o prazer de se esquecer da realidade, mesmo que por uma noite. Repasso meu dia em minha mente, como num ritual. Começo a recuperar memórias de outros tempos e parece que as que me vêm à cabeça são aquelas mais constrangedoras. Nessas horas, tento pensar em outras coisas, mas já sei, vai ser uma noite longa. Para fugir do que me assombra, gero.
Ela, a genitora: Na primeira contração, escapuliu uma letra. Era a vogal e. Na seguinte, duas letras. Dessa vez, a consoante v se combinava com a vogal a. Depois, como numa cascata, palavras e frases escorriam do útero. Até que, em um jorro, saíra um texto inteiro. O difícil era limpar aquela bagunça toda e seguir adiante.
Luzes estroboscópicas.
Música eletrônica.
A escrita é poderosa. É uma espécie de fotografia do pensamento de uma pessoa e também de uma época, um registro quase que eterno. É nossa maneira de protestar-incomodar-alentar-gritar-pedir-socorro-atingir-acariciar-morder-despertar-instigar-afetar-respirar-ufa! tal é a força das palavras.
É como se eu pegasse a sua mão e te conduzisse pra dentro de mim. E eu carrego todo o peso do meu tempo, das minhas dores e delícias. É um convite a calçar os meus sapatos, que podem ficar apertados, largos, ou não te servirem. Você pode odiar o cheiro, gostar da cor, se assustar com o modelo, ou de repente pensar em comprar sapatos iguais, ou um biscoito de chocolate.
Ela, a que só quer um biscoito: Ela tá te pedindo licença. Ela tá perguntando se você pode comprar um biscoito pra ela. Ela quer um biscoito. Não, ela quer um pacote de arroz, que é mais caro. Não, ela quer um biscoito, mas se for de chocolate. Ela disse que lá aceitam cartão. Mas tem que ser de chocolate. Ela diz que tem uma cara que ela não come um biscoito de chocolate. Ela disse que comeu um biscoito de chocolate ontem. Em seu sonho. Ela disse que o biscoito de chocolate a faz lembrar de sua mãe. Ela disse que chora quando tá com fome. Ela tá perguntando se o senhor tá com fome. Ela disse que chora quando lembra de sua mãe. Ela disse que ela morreu, sabe? Ela disse que ela morreu no mês passado e que ela não pôde se despedir. Ela disse que ela morreu com fome. Ela disse que ela não pôde se despedir porque não teve velório. Ela disse que eles não deixaram ter o velório. Ela tá perguntando se o senhor tem mãe. Ela tá perguntando se o senhor é filho de chocadeira, ou se o senhor tem mãe. Ela tá perguntando se sua mãe teve velório. Ela disse que o senhor deveria entendê-la. Ela acha que o senhor não vai lhe negar um biscoito. Ou um pacote de arroz. Mas ela disse que tem que ser de chocolate.
Silêncio e Blackout.
Existe algum limite para a imaginação? O que eu quero dizer e para quem eu quero dizer? O que eu não quero dizer e o que eu quero esquecer? O que eu posso dizer e o que eu não posso? O que eu devo e o que eu não devo dizer?
De onde venho e para onde vou?
Escrever é um jeito de confabular uma realidade que nós queremos e uma que não queremos também.
Luz de plateia.
Ela, a que traça caminhos: A gente tá seguindo essa linha, vê? Olha pro chão. Aí mesmo, onde tá marcado de giz. O giz está meio desgastado, mas se apertar bem os olhos você consegue seguir. Essa linha vira à esquerda, nunca à direita e nunca vai para trás. Seguir em frente é preciso. A gente faz um desvio aqui, outro ali, mas vai sempre em frente. Confia em mim, querida, eu tô logo atrás de você, seguindo a linha que resta dos seus pés que a apagam, pouquinho a pouquinho. É certo que eu já tô cansada, mas você pode seguir. Vai, vai na frente que eu te alcanço, vou só recuperar o fôlego que eu te alcanço, minha menina.
Gra Bohórquez é mestre em Zoologia com ênfase em sistemática zoológica pela Universidade Federal de Minas Gerais. Possui graduação em Ciências Biológicas com ênfase em educação ambiental (licenciatura e bacharelado) na Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais. É formada em Teatro no curso profissionalizante da Escola de
Teatro da PUC-MG. Foi Cofundadora do grupo de teatro Fáustica Companhia
(atuante nos anos de 2015 e 2016). Atuou em espetáculos, cenas-curtas e filmes de
curta-metragem com diretores como Cynthia Paulino, Eid Ribeiro e Luiz Arthur,
tendo se apresentado em diversos festivais como FIT-BH e A.Mostra.Lab.
Atualmente cursa licenciatura em teatro na UFMG, leciona teatro para crianças de 6
a 11 anos no Colégio Alumnus de Belo Horizonte, trabalha como dubladora e realiza
pesquisa em textos dramatúrgicos de autoria feminina.
Amor, passo aqui rapidinho para te deixar um abraço e dizer que eu tô passado com o seu progresso na escrita, na dramaturgia. É palpável o seu avanço! Te mando um áudio logo pra gente trocar ideias. Bessitos! 💛