“A grande paixão
Que foi inspiração
Do poeta é o enredo
Que emociona a velha-guarda
Lá na comissão de frente
Como a diretoria
Glória a quem trabalha o ano inteiro
Em mutirão
São escultores, são pintores, bordadeiras
São carpinteiros, vidraceiros, costureiras
Figurinista, desenhista e artesão
Gente empenhada em construir a ilusão
E que tem sonhos...”
(Martinho da Vila, Pra tudo se acabar na quarta-feira, 1984).
O samba-enredo Pra tudo se acabar na quarta-feira, composição de Martinho da Vila para o desfile da Escola de Samba Vila Isabel no ano de 1984, apresenta de forma poética um pouco do labor artístico de uma escola de samba até o carnaval. Neste trecho inicial, cita-se a construção plástica que, oriunda do tema escolhido pela agremiação e pelo carnavalesco, é responsável por contar a história, a qual atravessa a avenida dos cortejos através das esculturas alegóricas e das fantasias.
De outro lugar, a renomada figurinista Ruth Carter, ganhadora do Oscar 2019 de melhor figurino pelo trabalho realizado no filme Pantera Negra, da Marvel, ao apresentar alguns aspectos do seu processo de criação, afirma que sua inserção no campo do figurino não é originária do gosto pela moda. A artista aponta como suas principais referências os poetas e dramaturgos, e diz conceber indumentárias pelo prazer de contar histórias.
Em diálogo com essas concepções, compreendendo o figurino e a fantasia como elementos disparadores de narrativas, seja colaborando ou constituindo a dramaturgia teatral ou o enredo carnavalesco, eu também desejo contar uma história: um pouco do processo de criação das indumentárias utilizadas no espetáculo Abre Alas (2019), de artistas independentes de Belo Horizonte, Ribeirão das Neves e Sabará – MG [1].
Espetáculo Abre Alas. Fotos: Alexandre Hugo
A dramaturgia do espetáculo, criada por Andréa Rodrigues, teve como ponto de partida os desfiles Ratos e Urubus Larguem Minha Fantasia (1989), desenvolvido pelo carnavalesco Joãosinho Trinta, da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, e Com dinheiro ou cem dinheiro eu brinco (2018), do carnavalesco Leandro Vieira, da Estação Primeira de Mangueira. As críticas expostas nos enredos relacionadas às estruturas sociais - e à própria organização da festa carnavalesca, na qual ressoam as questões políticas brasileiras - são suportes narrativos para a criação de três personagens que, em situação de rua, sobrevivem dos restos de fantasias e criam alegorias com o que sobrou do carnaval passado das “grandes” escolas, tirando do lixo o que resta de luxo.
Durante o processo de criação, dadas às coordenadas do texto dramatúrgico, entendeu-se que cada artista incorporaria as características da escola de samba que a personagem representa. Era sabido que os símbolos e as cores das agremiações são potências imagéticas que nos fazem identificar o coletivo, sua história e seus valores. Logo, definiu-se que Deusdete, personagem interpretado por Diego Roberto, levaria consigo as cores da bandeira Salgueiro, o vermelho e o branco; Pilar, personagem de Anair Patrícia, estamparia o azul e o branco da Caprichosos de Pilares; e o Serrano, de Anderson Ferreira, as cores do Império Serrano: o verde e o branco.
Pensando que essa paleta de cores já matizaria esses indivíduos, buscou-se inserir a cor preta para que, assim como o branco das bandeiras das escolas em questão, fosse estabelecida uma unidade naquele universo do sonho e da memória sobre carnavais antigos, como uma fotografia em preto e branco. Porém o branco é substituído ora pela cor prata, ora pelo dourado, que ornamentam e fazem o acabamento com o brilho de alguns aviamentos. A cor prata também se justifica pelo constante material da lata que reluz como joia no lixo em que os personagens se encontram.
Nesse processo descrito, podemos perceber que os figurinos de Abre Alas se conectam com as fantasias das escolas de samba através dos enredos e da história de cada agremiação que inspiram a dramaturgia. O intuito de costurar um figurino para uma peça de teatro com os modos em que se constrói uma fantasia carnavalesca resulta em semelhanças plásticas tecidas pelo jogo de linhas, pelo uso das cores e das formas e pelo trabalho com materiais de muito brilho.
Além disso, buscou-se uma funcionalidade sobre o figurino/fantasia para o ato performativo de encenar como se brincasse o carnaval. Essa experiência, cuja estrutura da vestimenta sugere ações e comportamentos, como é preceito da fantasia de escola de samba [2], também é reconhecida no âmbito teatral. Em Abre Alas, por exemplo, esse ponto dialógico é estabelecido quando, segundo relatos das artistas envolvidas, o contato com o figurino influenciou a criação de algumas partituras cênicas, como os giros executados pela personagem Pilar ao vestir o que sobrou de uma saia da ala de baianas ou da composição de uma porta-bandeira.
Espetáculo Abre Alas. Fotos: Alexandre Hugo
As convergências entre figurino e fantasia aparecem quando refletimos sobre o fato de que, em Abre Alas, as narrativas inseridas na indumentária se constroem diante do olhar do público no desenrolar da peça pelas ações dos atuadores. Uma vez que, no teatro, o corpo e suas expressões contribuem para a propagação dos sentidos grafados na roupa, é por vezes difícil entendê-la desassociada da dramaturgia espetacular. Seu sistema semiótico alcança a significação dentro do objetivo de comunicar a narrativa ao se integrar com os outros elementos do espetáculo, como o movimento do corpo/voz dos atuadores. Enquanto a fantasia, também parte do enredo carnavalesco, se sustenta muitas vezes de símbolos de associações genéricas que, mesmo diante da subjetividade do olhar do público, possui uma receptividade mais direta e ativa no contexto do desfile.
Ambos os elementos plásticos percorrem um caminho na historiografia teatral e carnavalesca por diversas renovações sobre a sua funcionalidade no jogo espetacular e também a sua construção enquanto elemento significante e performativo.
No teatro, alguns dos principais movimentos que revolucionaram a cena e consequentemente as questões que permeiam o figurino e a cenografia acontecem no período de insurgência do teatro moderno, cujos encenadores se debruçam em estudos e experimentos no intuito de potencializar a cena e o trabalho de atuação, como também a sensibilidade do público.
A partir dos estudos de Roubine (1998), podemos dizer que o figurino do espetáculo Abre Alas se aproxima do pensamento simbolista quando, ao rejeitar o uso de objetos literais, que constantemente sustentavam certo ilusionismo sobre o real nas montagens naturalistas, pretende criar um espaço de função plástica e estética pelo trabalho com as cores, formas e suas tonalidades. Ao construir imagens dialogando com a rua, intenta inserir o público dentro da atmosfera das personagens pela sensibilidade e pela imaginação.
A inspiração muitas vezes vem do enredo, da dramaturgia. Seja figurino ou fantasia, transforma-se em elementos plástico-visuais, o que, outrora, pode ter sido letra ou melodia. Mas, não desenhamos, costuramos, pintamos, bordamos, colamos e alinhavamos para enfeitar a narrativa, e sim para, também, contá-la.
Cena do espetáculo Abre Alas. Foto: Alexandre Hugo
[1] Abre Alas é um projeto das artistas Anair Patrícia (atuação e produção), Anderson Ferreira (atuação e figurino), Andréa Rodrigues (dramaturgia), Diego Roberto (atuação e trila sonora), Marina Viana (direção), Rikelle Aparecida (direção) e Tatá Santana (trilha sonora) que estreou em setembro de 2019, pelo 1º Edital de Fomento para Montagem de espetáculo de rua do centro cultural Galpão Cine Horto, de Belo Horizonte-MG.
[2] É importante ressaltar que ao falar de escola de samba estamos tratando de uma manifestação afro-brasileira, na qual participam em sua maioria pessoas negras e pobres de áreas marginalizadas da cidade. Foi necessária uma série de negociações com o poder público até que esse modo de brincar carnaval atraísse a participação dos meios de comunicação e dos interesses econômicos e se tornasse, com fatores positivos e negativos, referência mundial. Assim, as regras do jogo estabelecido por esses setores, fizeram com que a festa e a própria noção de fantasia se modificassem no percurso da história. Nesse texto utiliza-se como base para conceituação o que se espera do quesito Fantasia no concurso anual das escolas de samba que acontece no período carnavalesco. O manual do julgador está disponível em: https://liesa.globo.com/material/carnaval18/julgador/Manual%20do%20Julgador%20-%20Carnaval%202018.pdf. Último acesso em 26 mai. 2020, às 14h
REFERÊNCIAS
CAVALCANTI, Maria Laura. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.
FERREIRA, Felipe. Escola de samba: uma organização possível. In.: KAMEL, José Augusto. Revista Eletrônica Sistema e Gestão. Niterói: Escola de Engenharia, Universidade Federal Fluminense, v. 7, n.2, 2012, p. 164-172. Disponível em http://www.revistasg.uff.br/index.php/sg/article/view/V7N2A3/V7N2A3. Acesso em 29 mar. 2020.
MARTINHO DA VILA. Pra tudo se acabar na quarta-feira. In.: MARTINHO DA VILA. Escola De Samba Enredos: Vila Isabel. Rio de Janeiro: Sony Music, 1993. Faixa 2.
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
RUTH CARTER: DESIGN DE FIGURINO (temporada 2 capitulo 3). In: Abstract: the art of design [série documental]. Produção de Scott Dadich. Califórnia: Netflix. 2019.
Anderson Ferreira é ator, pesquisador, figurinista e contador de histórias. Mestrando em Artes da Cena pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisa as relações entre manifestações performativas afro-brasileiras, principalmente o Teatro Negro e os Desfile de Escola de Samba.
Possui Licenciatura em Teatro e Bacharelado em Interpretação Teatral pela UFMG.
Integra a ficha técnica de diversos espetáculos como ator e figurinista, entre eles "O grito do outro - O grito meu!" (2016) e "Ama" (2018), da Companhia Espaço Preto, "Abena" (2017), da Cia Bando e “Abre Alas” (2019), trabalhando com artistas independentes.
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