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MINHA ARTE NA VIDA OU MINHA VIDA NA ARTE?

Por Alice Cabral


Eu acredito no teatro de cura, onde é possível pensar todo dia.


Primeiramente, eu gostaria de registrar, no início deste texto, meu agradecimento à equipe do Mistura pelo convite. É muito importante poder compartilhar um pouco das minhas trajetórias nas artes, tão recentes, mas tão frutíferas e especiais. Todos esses caminhos envolvem pessoas que amo muito, incluindo minha família, parte fundamental da minha história.


A arte em minha vida ou minha vida na arte? Esse questionamento permeia vários dos meus processos de criação. Para início de conversa, assumo a perspectiva de que o ator tem que ser múltiplo, ou seja, devemos compreender todos os processos artísticos que envolvem o fazer teatral. Hoje, tento fazer de tudo um pouco. Me faço em fragmentos para melhor entender a arte, levando essa ferramenta como uma filosofia. Além disso, utilizo uma ideologia de trabalho: teatro é construção coletiva. Acredito na possibilidade de aprendizagem mútua. Minha trajetória artística baseia-se nessa perspectiva.

Descobri que temos muito a aprender com as memórias – as nossas e as do outro. É muito importante ter em mente que a pessoa com a qual conversamos tem uma história por trás daquele olhar e que existe uma complexidade de identidades não aparentes externamente. É comum que as pessoas não mostrem o que realmente são, precisamos vê-las, precisamos enxergá-las humana e verdadeiramente. É por isso que acredito no lugar do teatro, pois ele possibilita que as pessoas possam se emocionar, surpreender-se, identificar, aprender. Por que não contar sobre nossas experiências e fazer dos nossos registros materiais para criação?


Em 2014, ano em que me formei no Valores de Minas, tive a oportunidade de realizar uma peça de teatro. O processo envolveu grandes discussões de grupo, mesclando individualidades e coletividades, o que resultou em doze histórias pessoais e totalmente diferentes. Desde então, meu espírito foi apresentado à “arte do documentar”. Lembro que, depois de um tempo, olhei bem no fundo dos olhos de meu avô e, escutando-o contar suas histórias engraçadas, disse: “vô eu quero montar uma cena de teatro falando do senhor!”. Meu avô foi embora em 2015, mas, mesmo assim, não parei de escrever sobre ele. Minha relação e meus sentimentos por minha família foram os grandes motores que me impulsionaram a continuar.


Apresentamos o “Deixe-me ir, preciso me encontrar” em 2016, com produção própria. Naquela oportunidade, fiz coisas que nunca havia feito antes – pude desenvolver dramaturgias, atuar na preparação vocal e corporal, na direção e na produção. Nada disso teria acontecido sem a participação da minha mãe, Sônia Câmara, e de Leandra Batista, uma grande amiga que me acolheu como filha e que também se empenhou nesse projeto. Ver o resultado de um trabalho que se iniciou com um desejo meu e ver minha família bastante aplicada para que esse espetáculo acontecesse, foi um sonho realizado. O que me emocionou e até hoje me emociona muito é ver que o público se identifica com nossa história. Muitos nos disseram “nossa, tem muito tempo que não falo com meu avô, amanhã mesmo vou ligar e fazer uma visita”. A ideia principal é falar de resgate, da valorização, de memórias.


A oportunidade de entender e de atuar na produção cultural do espetáculo também foi um aspecto fundamental durante essa trajetória. Enquanto estava no processo de produção, ao vender um ingresso para uma colega, ela me questionou quantos lugares havia no teatro. Eu respondi – 420. Ela prosseguiu com seu questionamento “mas, vocês vão conseguir público ?”. Respondi: “não se preocupe com isso, está tudo muito bem organizado e preparado para você assistir”. No dia 16 de julho, eu olhei para aquelas 300 e poucas pessoas e pensei – hoje, eu concluí o que tinha para fazer. É um espanto para algumas pessoas ver uma mulher negra realizando um trabalho bem feito.


A realidade nos deixa de cabeça pra baixo, trazendo toda sensibilidade que existe em nós. Algo que queremos pode nos fazer esperançosos, mas com uma força grandiosa para lidar, guardamos retratos bons, ruins e uma lembrança maravilhosa. A coragem ajuda-nos a ser invisíveis e a lutar todos os dias contra uma dor que chega a ser insuportável. A força, a determinação nos acordam todos os dias, mas às vezes só queremos voltar a dormir. Corremos todos os dias para todos os lados, para conquistar um sonho e lidamos como uma forma tão engraçada que achamos que é coincidência. E como entender o simples fato de que ainda vai demorar... Vivemos em um mundo onde nos apegamos às coisas, principalmente às pessoas.


Peça teatral Deixe-me ir preciso me encontrar (2016) - Foto: Michele Eleutério


Teatro é encenar o passado inquietante, fazer dele o presente, absorver experiências para transformar vidas. Atualmente, continuo desenvolvendo minha pesquisa no teatro documentário, na interpretação dramática, na música, na voz, no canto e na subjetividade ligada ao ser humano. Ainda faz parte do meu processo de criação a música, que é uma ferramenta significante: além de ser uma manifestação de um universo interior, ela permite esclarecer milhares de sentimentos.


Cultivo o trabalho vocal, pois percebo que, ainda no cenário teatral, há muitas dificuldades de se pronunciar, de ecoar vozes, de transbordar narrativas, principalmente nós, pessoas negras, por trazermos em nossos corpos uma carga histórica e ancestral. Dessa forma, utilizo da música, da voz e do canto para mudar esse quadro. Assim, busco me inserir no teatro de múltiplas formas.

Acredito na perspectiva de que, para a construção artística de uma pessoa negra, é extremamente importante estar à vontade em realizar qualquer trabalho cultural. E o ambiente artístico precisa se preparar melhor para isso. A arte pode ser uma ferramenta bastante potente de suprimir a violência, a desvalorização, o incômodo do preconceito e, por fim, uma forma de apagar esses milhares de poréns. É uma comoção do procurar um estado de existência e, principalmente, por estar em um meio artístico, uma resistência.


Não vou mentir, mas inúmeras vezes já pensei em desistir. Fazer algo diferente, que não seja a arte. Mas... quem nunca? O meu objetivo de transformar as dores íntimas com experiência pessoais é difícil, mas acredito na potência dessa mudança. Tenho muito respeito ao teatro e ao meu trabalho, que é conduzido com seriedade, com respeito e com escuta.


 

Alice Cabral é dramaturga, preparadora vocal, diretora e produtora nas horas vagas. Atriz formada pelo Teatro Universitário – UFMG. Pesquisa o teatro documentário e escreve textos nessa linha. Atualmente, estuda violino, é atriz e pesquisadora no grupo de teatro Trupe a Torto e a Direito da faculdade de Direito da UFMG. Cursa música com especialização em musicoterapia na UFMG.


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