top of page

MULHERES, TEATRO E PANDEMIA: Notas sobre um Livro Imaginário

Por RAQUEL CASTRO


Certa vez, usei como epígrafe de um trabalho paradoxalmente extenso uma citação do escritor argentino Jorge Luis Borges, que dizia preferir a escrita de notas sobre livros imaginários à composição de grandes obras. O fragmento dá uma pista da visão sombria, moderada pela humildade e pelo humor, do autor que perseguiu o labiríntico e o infinito na literatura que produziu:


Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma ideia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem e apresentar um resumo, um comentário. [...] Mais razoável, inepto, ocioso, preferi a escrita de notas sobre livros imaginários.



Depois de alguns anos, a citação me volta à cabeça ao pensar no assunto deste texto. Dessa vez, sem ironia nem intenção de polemizar a erudição, a busca pela originalidade e a certeza pura, pensei no verdadeiro desejo de ler um livro que não encontrei e na impossibilidade de escrevê-lo.


Muitas pessoas têm se dedicado à tarefa heroica e infinita de traduzir em palavras os desafios, questões, anseios e sentimentos surgidos, evidenciados ou intensificados durante a pandemia que vivemos em 2020. Li textos muito interessantes sobre a pandemia, sobre os desafios da mulher na pandemia e sobre o teatro na pandemia. Mas, meu desejo era ler um vastíssimo livro (contrariando Borges) sobre os trabalhos e os dias das mulheres de teatro. E (porque está difícil não tocar no assunto, o que se prova por eu ter escrito 5 vezes a palavra pandemia somente neste parágrafo) sobre tudo aquilo que já foi, até o momento, impactado nas vidas das mulheres de teatro durante a pandemia. Certamente não é pouca coisa.


Primeiras Notas

Até que o tempo passe e uma mulher notável escreva tal livro, apresento aqui os possíveis destaques que eu faria com canetas marca texto coloridas nesse livro agora imaginário e os comentários que eu rabiscaria, à lápis e pouco legíveis, em suas páginas (tenho o péssimo hábito de escrever nos meus livros).


Esse conjunto de notas soltas compreenderia, primeiramente, frases e parágrafos que me ajudassem a entender o contexto geral da relação entre gênero e pandemia no Brasil. De amarelo, eu destacaria que as mulheres são maioria em algumas das categorias profissionais economicamente mais vulneráveis aos efeitos da pandemia, como faxineiras diaristas, em sua maioria negras. As mulheres estão mais sujeitas à informalidade no país do que os homens. Apesar da participação masculina massiva nos aplicativos de entrega, trabalhadoras domésticas sem contrato de trabalho ainda superavam esse número, segundo uma análise do IBGE divulgada em 2019.


Não tenho dúvidas de que haveria uma nota triste sobre o aumento assustador dos casos de violência doméstica durante a quarentena. Só em São Paulo, o aumento notificado foi de 44,9% no atendimento a mulheres vítimas de violência em comparação ao mesmo período de 2019. Casos de feminicídio subiram 46,2% no mesmo estado.


Outro destaque seria os assassinatos de mulheres trans e travestis, que subiram 13% durante o isolamento social, segundo pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), contrariando a expectativa de queda como aconteceu nos números gerais de assassinatos (assassinatos de homens brancos talvez...) durante a pandemia. A Antra revela que, nos quatro primeiros meses de 2020, também foram notificados 11 suicídios, 22 tentativas de homicídio, 21 violações de direitos humanos, além de 6 casos de mortes relacionadas à Covid-19. A associação denuncia a falta de uma política específica para a população LGBT+ durante a pandemia.


Marcador amarelo também para o genocídio indígena que segue seu curso no Brasil com ou sem pandemia. Mulheres como Avelin Buniacá Kambiwá e Célia Xakriabá, na luta por vidas indígenas, não têm um minuto de descanso e nunca tiveram.


Abaixo desse último destaque sobre as mulheres indígenas, eu faria meu primeiro comentário em forma de rabisco ilegível contando que, hoje mesmo, dia em que escrevo estas notas, assisti a uma live no instagram com a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e um garotinho pastor, de 5 anos de idade. O menino, vestido de terno e gravata e se proclamando “procurador da ministra”, diz que o governo dele teria três ministérios: o dos índios, o dos animais e o das mulheres. Damares animada diz que tem as três “espécies” em casa e mostra seu cachorro pug, sua filha adotiva indígena, Lulu, além dela própria, mulher. O garoto conta que tem também um cachorro e a ministra pergunta se o cachorro dele é de direita ou de esquerda. O dela é de direita. A live denominada “Live do Século” termina com uma oração em que o fervoroso garotinho roga a Deus “que morra o vírus e tudo que estiver carregando o vírus!” Que Deus não escute tão literalmente a prece do pastorzinho...


Na sequência, mais uma nota preocupada constataria que, no sistema de saúde, as mulheres estão na linha de frente dos cuidados prestados aos infectados pelo vírus, já que são ampla maioria na área de enfermagem. Há, ainda, a situação das mais de 11 milhões de famílias no Brasil compostas por mães solo, que podem não ter com quem compartilhar o trabalho dentro de casa. Então, eu me lembraria que o trabalho dentro de casa aumentou durante a pandemia e as mulheres, mães solo ou não, parecem ser a maioria acompanhando e orientando as atividades escolares dos filhos em casa. E, dessa vez, eu me lembraria das professoras, maioria na educação básica pública, de seus salários baixos e da falta de recursos para que trabalhem com qualidade e saúde durante a pandemia.


As mulheres são maioria na população brasileira. E minoria na política. Mas esse fato não é “privilégio” brasileiro. Segundo dados da ONU de 2019, 94,3% do mundo é governado por homens. E quem ainda se surpreende que a humanidade esteja indo tão mal?


Nesse ponto, eu rabiscaria a frase “Quem vai olhar as crianças?”, nome da micropeça em que atuei com minha filha e 4 alunas, jovens entre 13 e 17 anos, cujo mote foi justamente as estatísticas sobre a presença de mulheres na política. No início de 2020, começamos a trabalhar no espetáculo completo. Com a chegada da pandemia e a impossibilidade de ensaiar presencialmente, buscamos formas de continuar.


A próxima nota seria uma notícia, que ressalva que nem tudo é pior para as mulheres na pandemia. Pesquisas preliminares têm mostrado uma taxa de infecção e de mortalidade em decorrência do Sars-Cov-2 maior entre os homens do que entre as mulheres. Parte da explicação pode residir no estrogênio, hormônio sexual feminino que estimula o sistema imunológico e favorece o combate à infecção viral. Mas fatores genéticos, culturais e sociais também desempenham um papel na questão. Se mais homens fumam, por exemplo, ou são portadores de doenças crônicas, isso os torna mais suscetíveis ao vírus.


Essa nota me faz pensar no livro “O país das mulheres” da autora nicaraguense Gioconda Belli. Em Fáguas, pequeno país latino americano fictício, o PEE (Partido da Esquerda Erótica) chega ao poder pelo brilhantismo e popularidade da candidata Viviana Sansón e com a ajudinha de um fenômeno natural inesperado. O vulcão Mitre entra em erupção durante a campanha presidencial e, após o primeiro momento de susto em que parte da cidade é tomada pelas lavas, os gases do vulcão causam um déficit de testosterona nos organismos dos homens que “abençoam Fáguas com uma mansidão masculina nunca vista”. Não que as personagens da trama atribuíssem ao hormônio as atitudes violentas, autoritárias ou beligerantes dos homens. Estavam certas de que eram construções sociais e culturais, mas os homens acabaram ficando em casa para se tratarem do mal que lhes acometera e as mulheres ganharam espaço, convencidas de que poderiam conquistar o que em séculos o poder masculino não conquistou.


Sei que o momento não é para brincadeiras (embora os produtores de memes não o saibam) e milhares de famílias estão enfrentando seus piores dias, mas me permito na intimidade destas notas do meu exemplar imaginário, certa divagação imaginando uma outra pandemia. Penso nessa outra pandemia imaginária desde que li uma reportagem que dizia que o coronavírus pode se alojar nos testículos dos seres humanos. Como os gases do vulcão de Fáguas, o tal vírus imaginário não seria fatal mas causaria certa inação e quietude, alojado tranquilamente nos testículos. Penso especialmente nos testículos dos homens de poder.


A última nota deste primeiro bloco me lança de volta à realidade com uma conclusão em amarelo fluorescente: a capacidade produtiva das mulheres, sobretudo das mães, está comprometida na pandemia. A carga emocional, psíquica e física (que nunca foi pouca) agora é enorme. É necessário promover estratégias específicas para a recuperação econômica das mulheres, considerando programas de transferência de renda para mitigar o impacto da pandemia e suas medidas de contenção. Contudo, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no Brasil é a Damares Alves. Na Cultura, tivemos também uma mulher como secretária, a atriz Regina Duarte. Mas sobre ela não tenho vontade nenhuma de fazer uma nota, sequer um rabisco.


Notas sobre o Teatro

No esforço para voltar a sonhar, o capítulo 2 do livro imaginário me oferece notas sobre o teatro. Entre sonhos e pesadelos o teatro persiste.


Se alguns textos sobre o teatro em tempos de pandemia discutem o lugar normativo do que o teatro é ou não é, defendem a resistência às investidas digitais (que não são exatamente novidade no teatro), enfatizam a exaustão das lives e das redes sociais, criticam o imediatismo na produção durante a pandemia; outros se dedicam a ressaltar como essa ação é estéril e garantem que tais obras são sim experiências teatrais. Se alguns reafirmam as especificidades de cada linguagem, outros destacam aquilo que é comum a elas. Outros preferem ainda ponderar dizendo que entre “sim ou não” o mais sábio é considerar “sim e não”.


A primeira nota em caneta marca texto verde fluorescente deste segundo bloco seria sobre as possibilidades para o teatro diante da adversidade. Gosto especialmente do caráter de estudo disso tudo. Novos olhares, novas perguntas. Não me agrada a ideia de abrir mão da especificidade e de certa artesania do teatro e não creio que se trate necessariamente disso, mas de investigar outras possibilidades conceituais e estéticas diante da impossibilidade do compartilhamento de espaço e tempo pelos corpos no acontecimento teatral como conhecemos.


Artistas da cena têm investigado, como podem, os efeitos de presença. Suas obras são instigantes: “experimento sensorial em confinamento”, “peça digital”, “teatro vídeo conferência”, um “filme-ensaio” para uma peça que estava a ponto de estrear, ou o “cineteatro de pandemia” no Teatro Estúdio do Teatro de Arte de Moscou (Olha só, Stanislávski! Aqui na certa eu faria um comentário porque sempre me pergunto o que os mestres de teatro que estudei fariam nessas situações. Faço perguntas para ̶B̶r̶e̶c̶h̶t̶ ou ̶M̶e̶i̶e̶r̶h̶o̶l̶d̶ ̶ e escuto suas respostas imaginárias... então me incomodo porque são sempre lembrados e eternizados os homens de teatro. Paro imediatamente de falar com eles e abro diálogos com as mulheres de teatro que imagino vivendo e lutando para fazer arte naqueles tempos).


Há também quem tenha se voltado para a própria história do teatro na busca de possíveis saídas para o teatro do chamado “novo normal”, revisitando o teatro lambe-lambe, a tradição dos crieurs de rue franceses, o rádio teatro ou teatro radiofônico, o teleteatro da década de 50, o teatro de escalas ampliadas em que você vê os atores de longe, além de outras formas de teatro a céu aberto e teatro para pouca gente (este último já experimentei bastante mesmo quando não era a intenção).


A segunda nota seria acompanhada de um comentário preocupado: esse processo do teatro com virtualidades e digitalizações acelerado pela pandemia pode deixar muita gente para trás.

Lembro de ter ouvido a professora e pesquisadora Mariana Muniz dizer que a relação entre teatro e internet já causava certa insatisfação, certa tensão em muitos artistas que não aceitavam a contaminação do teatro pelas outras mídias muito antes da pandemia. Porém, como Mariana, não tenho a menor preocupação em relação a isso. O teatro pode se contaminar com o que quiser e o fato é que sempre o fez e sobreviveu também por essa razão.


O que preocupa nesta nota é que os obstáculos para o acesso ao teatro já existiam e seria triste criar ainda mais obstáculos agora, seja no acesso ao seu ensino, produção ou apreciação.


Como professora de teatro adoro pensar nas múltiplas possibilidades de ensino. Por isso, eu rabiscaria nesta parte do livro alguns pensamentos que tenho investigado com estudantes nos projetos de extensão e pesquisa em teatro na instituição pública que trabalho. Por contraste, temos estudado muito a presença. O contraste é a forma mais rápida de percepção humana; assim, a ausência do nosso contato físico em sala de aula parece evidenciar as ideias de convívio e de presença no teatro. A ausência é uma presença muito forte. E de forma mais geral, penso na dimensão da presença, “nosso amplo presente” e a “produção de presença”, noções do filósofo ̶H̶a̶n̶s̶ ̶U̶l̶r̶i̶c̶h̶ ̶G̶u̶m̶b̶r̶e̶c̶h̶t̶ . Não. Não vou citar outro homem branco europeu nas minhas notas e aqui eu rabiscaria imediatamente o comentário que acabei de escrever.


O virtual é uma oposição à presença? Quais as teatralidades possíveis agora? Que relações podem existir entre a sociologia dos espaços virtuais e a teatralidade? São questões que instigam artistas e professores de teatro. Mas não são as mais urgentes.


Se continuo a trabalhar nos projetos de extensão e pesquisa, o mesmo não acontece com minha atuação no ensino regular. As aulas estão suspensas porque as instituições públicas precisam garantir o acesso democrático, amplo e universal à educação e EAD não se faz da noite para o dia. É uma modalidade específica de ensino remoto que, tendo sua importância ampliada nesse momento, exige capacitação, planejamento e, ainda que possa e deva ir além das possibilidades da internet, lidará com a questão da inclusão digital.


Como artista, do ponto de vista da produção, a questão da inclusão digital também está presente. Eu destacaria no livro imaginário um parágrafo sobre o deslocamento das funções dos artistas de teatro durante a pandemia. Algumas delas se mostram completamente novas para grande parte de nós, como as de digital influencer, youtuber, instagrammer, videomaker, editor... “Precisamos aprender a editar vídeos!”, eu rabiscaria abaixo da nota, rindo e lembrando de uma conversa pelo zoom com amigas e colegas de profissão enquanto bebíamos cerveja.


Desafiador, também, seria o assunto da última nota sobre o teatro antes de descansar a caneta marca texto verde: O “novo normal” com plateias restritas, os novos e caros protocolos de segurança para reabertura dos espaços teatrais no Brasil.


Fico de olho no que acontece na Europa (força do hábito de colonizada), mas tento aprender a usar esse olhar para ampliar perguntas e não para copiar as respostas, exatamente como sugere a gestora cultural Beth Ponte em seu texto “Reabertura cultural além dos protocolos”. Para ela, já está evidente que “os padrões europeus não têm transposição para a nossa realidade, infelizmente, muito mais grave”.


De todo modo, é quase consenso que o “antigo normal” não era normal. Por exemplo, quando vivíamos em um país “normal”, quem tinha acesso aos espaços teatrais com mais recursos? Quem ficava às margens se virando para construir alternativas?


Aprendemos com Brecht que algo comum não deveria ser considerado necessariamente normal. Não seria aceitável normalizar algo injusto, excludente, desigual e preconceituoso apenas porque acontece com frequência. O ato de normalizar estanca a possibilidade de mudança. Talvez fosse mais correto dizer “novo comum” em vez de “novo normal” no contexto da pandemia. Até porque as narrativas de “novo normal” já estão sendo disputadas por instituições econômicas, políticas e sociais, não sem interesses bem definidos e muitas vezes escusos.


Meu último rabisco aqui é sobre a sensação de que estamos ainda velando o século XX.


Notas ̶c̶r̶í̶t̶i̶c̶a̶s̶ ̶d̶e̶s̶e̶s̶p̶e̶r̶a̶d̶a̶s̶ ̶e̶s̶p̶e̶r̶a̶n̶ç̶o̶s̶a̶s̶ ou Digite notas sobre as mulheres e deixe seu corretor completar


É comum, no “antigo normal”, que mulheres nas periferias realizem trabalhos artísticos e sociais monumentais e nunca sejam devidamente reconhecidas ou pagas por isso (ouvi a diretora de teatro Onisajé citar, durante um congresso virtual, nomes de diretoras baianas negras que a precederam e foram esquecidas pela história do teatro. Senti vergonha por não conhecer nenhuma delas e saber tanto sobre os célebres diretores homens de sempre).


É comum que mulheres que tenham passado por alguma formação teatral tenham sido apresentadas a pouquíssimas referências femininas. É comum que mulheres que tenham frequentado um curso superior de teatro, até alguns anos atrás, não tenham tido muitas colegas negras na turma e não tenham estudado o trabalho de nenhuma mulher negra.


É comum estudar a história ocidental do teatro e suspeitar que as mulheres foram invisibilizadas. É comum estudar a história do teatro brasileiro e ter certeza que as mulheres foram invisibilizadas.


É comum que diretoras de teatro sejam tachadas de megeras, enquanto homens, com as mesmas atitudes, sejam elogiados por serem assertivos e até charmosos quando são intragáveis (o mesmo acontece com as presidentas). É comum que trabalhadoras mulheres tenham menos espaço e recebam menos nas funções técnicas do teatro do que trabalhadores homens.


É comum pesquisar o termo “mulheres encenadoras” no google e ler a mensagem “Você quis dizer mulheres encanadoras”. Mas, não pense que a sugestão diga respeito exatamente à profissão de encanadora. Clique em imagens e descubra. É comum fazer uma busca na Amazon por “livros de diretoras” e o site o questionar se sua pesquisa não seria por “livros de diretores”.


Neste ponto do livro imaginário, me sinto cansada. São mais de 100 páginas com situações comuns para mulheres de teatro de todos os tipos e lugares. Largo a caneta marca texto rosa fluorescente concluindo que aí está nosso saudoso “normal”, ao qual muitas pessoas estão ansiosas para voltar.


Faço, então, uma pequena nota mais feliz, lembrando com profunda admiração artistas como Scheylla Bacellar e seu projeto Mulheres da Quebrada, Cláudia Henrique e sua atuação artística e comunitária na Casa de Candongas, ou Hérlen Romão, do Morro Encena.


Penso nas minhas colegas do Coletivo Mulheres Encenadoras - rede de pesquisa, criação e compartilhamento de trabalhos de mulheres artistas da área da encenação teatral.


Penso nas pesquisadoras de teatro, como a Letícia e seu intenso levantamento sobre as diretoras mulheres; e ainda na Juliana, na Júlia e na Thálita e nossos estudos sobre performatividade e política.


Penso no Coletivo Bacurinhas e sua arte feminista; na Idylla, com o espetáculo “Guerrilha”; na Dona Efigênia Rolim, artista que inspirou o espetáculo “Eles Também Falam de Amor” em que atuam a Lélia, a Andréa e o Charles.


Penso nas trabalhadoras de teatro da ATAC (Articulação de Trabalhadoras e Trabalhadores das Artes da Cena pela Democracia e Liberdade), que estiveram à frente da mobilização nacional para a aprovação da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc na Câmara e no Senado. Penso na vereatriz Cida Falabella, que anunciou, hoje mesmo, o projeto de lei da Retomada Cultural em BH proposto por sua Gabinetona na Câmara de Vereadores de BH.


Penso em Ave Terrena, mulher trans, dramaturga e professora da Escola de Teatro de Santo André em SP, que ouvi, dias atrás, falando sobre a importância que se garanta o acesso de pessoas trans e travestis nos espaços de formação. Imagino quantas mulheres incríveis de teatro como Ave Terrena, Aisha Bruno ou Renata Carvalho estamos deixando de ter no Brasil onde, para começar, a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos. Depois de sobreviver, é preciso brigar para ter garantido o direito de acesso à educação e cultura. Em consequência, a possibilidade de escolher e seguir uma carreira como atriz, diretora, dramaturga, iluminadora ou qualquer outra profissão no teatro parece extremamente remota.


Penso nas minhas alunas e nos meus alunos adolescentes e toda abertura, desejo e coragem eles têm para a cena teatral (ainda que a maioria nunca tenha tido a chance de ir ao teatro!).


Penso nas colegas artistas se reinventado durante o isolamento social, revisitando as gavetas daquilo que não foi para a cena por falta de tempo, incentivo ou dinheiro. Que gavetas extraordinárias devem ser! Espero que muitas atrizes, diretoras, dramaturgas e produtoras revisitem suas gavetas.


E penso que precisamos sobreviver.


Paro (enfim) de pensar e consulto as referências bibliográficas ao final do meu exemplar do livro imaginário. Descubro, lá, a referência de uma enorme coleção imaginária, enciclopédica, com um volume para cada mulher de teatro do mundo. Todos os títulos da coleção começam assim: “Os trabalhos e os dias de...” e então vem o nome da artista. Por curiosidade, procuro pelas minhas contemporâneas e conterrâneas e lá estão os volumes: “Os trabalhos e os dias de Grace Passô”, de Marina Viana, de Ione de Medeiros, de Rita Maia, de Letícia Castilho e tantas outras... Parece uma coleção incrível e eu gostaria de viver muito para ter tempo de lê-la inteira.


Confesso que ainda não terminei de ler nem o livro imaginário do qual extraio estas notas. É muita informação nessa pandemia. No entanto, eu não poderia deixar de fazer um último destaque em caneta marca texto sublinhando o óbvio: vivemos um período crítico para as mulheres de teatro no Brasil. Sempre vivemos a desigualdade de gênero e não consigo acreditar que o “novo normal” vá corrigir, por si só, essa ou qualquer outra forma de desigualdade. Aumento de trabalho doméstico, exposição à violência e vulnerabilidade econômica são aspectos exacerbados pela pandemia e atingem também as trabalhadoras de teatro, especialmente em um país que parece ter declarado guerra a certas categorias como a de artistas e professores. E somos muitas nessas funções.

Não sei se o final do livro revela respostas ou traz novas perspectivas. Nem mesmo sei se vou gostar dele. Prometo escrever mais notas quando eu descobrir. No momento, só espero que haja um futuro para a espécie humana nesse mundo e estou convicta de que um futuro melhor só será possível se for conduzido por MUITO MAIS MULHERES na política, no teatro e onde mais quiserem estar.


E você, mulher que está lendo estas notas, se puder, por favor, me mande notícias dos seus trabalhos e dos seus dias na pandemia.


Raquel Castro de Souza

15 de junho de 2020

 

Aula 1 | Diretoras mineiras: uma história presente | Raquel Castro (Mulheres Encenadoras)


Aula 2 | Diretoras mineiras: uma história presente | Raquel Castro (Mulheres Encenadoras)

 

Referências

 

Raquel Castro é atriz e diretora de teatro. Professora do Departamento de Arte, Design e Tecnologia do CEFET-MG.

É formada pelo Teatro Universitário da UFMG e Doutora em Artes da Cena pela EBA/UFMG.




472 visualizações0 comentário
bottom of page