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NEGRITUDE(S) POLÍTICAS EM CENA: (re)encontros no Teatro Universitário

Atualizado: 18 de jun. de 2020

Por Alex Teixeira


Por quase quatro séculos, as bases de sustentação econômica do nosso país fundamentaram-se em políticas de dominação de corpos negros, cujo alicerce foi institucionalizado por regras jurídicas que legitimavam a sistemática do escravismo colonial. A violência, fator primordial de manutenção do sistema escravista, deixou suas marcas em chagas nos corpos de pessoas negras escravizadas. Apesar da suposta abolição da escravatura em 1888, o Estado brasileiro agiu de forma diametral aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana: além de não ter sido condenado pelos séculos de escravidão, nosso país desenvolveu políticas públicas segregacionistas, cujo alvo direto foi a população afro-brasileira recém liberta apenas em parâmetros formais.


Além disso, as visões biológicas (leia-se: eugenistas) sobre a raça ganharam relevo, sobretudo na década de 1930, omitindo a existência e a presença do fator socioeconômico intimamente ligado à raça, especialmente na formatação da sociedade brasileira, formada pelo preconceito de marca. As consequências de um contexto de repressão, de opressão e de punição ainda reverberam em tempos contemporâneos, porém com outras remodelações e tecnologias de poder.


Em uma era ilustrada pelo mito da democracia racial, as noções sobre cor, etnia e raça costumam ficar em planos secundários do debate, geralmente neutralizados pela difusão do discurso de fé de que ‘somos todos iguais’. No papel e numa sociedade ideal, realmente somos. Na prática, a situação é oposta: a pirâmide racial tem encontrado novos modelos de propagação, os quais podem ser verificados nas estruturas de nossa sociedade, seja no obsoleto e desumano sistema carcerário, seja em abordagens policiais “de rotina” ou nas construções simbólicas negativas que disseminam subjetividades estereotipadas sobre o(s) povo(s) afro-brasileiro(s).


Em uma sociedade constituída e estruturada por um sistema de hierarquização racial, nós, pessoas negras, temos tentado seguir a estratégia mais antiga concebida por nossos ancestrais: aquilombamos afetos, estabelecemos redes de conexão, juntamos nossas semelhanças em um projeto de luta e de resistência.

Temos o dever de combater a difusão e a propagação de histórias únicas. É o nosso direito e o nosso dever ocupar lugares cuja hegemonia é branca, rica, machista, patriarcal e heteronormativa. É o nosso direito e o nosso dever agir em prol da construção afirmativa sobre nossas histórias e sobre nossos povos afro-brasileiros.


Desse modo, é óbvio que a ocupação dos nossos corpos negros nas linguagens artísticas não poderia ser diferente: o Teatro Universitário da UFMG foi um espaço de (re) encontro, de (re) aproximações, de reunir forças para combater estruturas racistas.


Nos juntamos pelas semelhanças e, também, pelas diferenças, por mais paradoxal que essa sentença pareça ser. Carregamos histórias diversas e plurais, mas há um fio condutor que nos une, e é nele que o nosso encontro se potencializa.

Foram inúmeros os incômodos sofridos e vivenciados por várias alunas e alunos negros no Teatro Universitário da UFMG, desde abordagens descompromissadas com temáticas e narrativas negras a casos de injúria racial e de silenciamento de nossas vozes. Percebemos, então, uma constante reprodução, na instituição, do racismo estrutural e estruturante. Com o tempo e, principalmente, com a ampliação do sistema de cotas raciais (e a consequente potencialização do discurso sobre as ações afirmativas), a ocupação de pessoas negras dentro do Teatro Universitário da UFMG ficou ainda mais evidente.


Fortalecidos pela crença de que a linguagem artística tem o poder de transmitir mensagens de extrema importância à nossa sociedade, alunas e alunos negros do Teatro Universitário da UFMG movimentaram-se para criar e construir coletivos de Teatro Negro, pesquisando narrativas artísticas que são constantemente suprimidas das bases curriculares de ensino. Cientes da conjuntura de epistemicídio, nós, estudantes negros do Teatro Universitário, elaboramos ações e intervenções, até então não vivenciadas dentro da escola, para elevar nossa representatividade, reafirmar nossa existência e resgatar as nossas memórias.


Coletivo de Teatro Negro Espelho, espetáculo 'Pietá', na Segunda Preta (Teatro Espanca) Fotografia: Pablo Bernardo


No universo das artes, é evidente a importância de destruirmos estereótipos que foram simbolicamente construídos ao longo da história, inclusive no teatro. A retratação audiovisual e publicitária da população negra é comumente feita mediante a imposição de fatores segregacionistas. Tudo isso amplia esse sistema embranquecedor e racista na construção das nossas identidades.


Nosso povo não pode ser resumido à visão simplista constantemente propagada e reforçada pelas agências de poder. Todo esse cenário retrógrado e discriminatório, construído pela branquitude, deve ser combatido por todos.


Ao longo do tempo, construímos novos parâmetros e diretrizes, sobretudo com a ascensão do Teatro Negro, fruto da resistência e da luta dos nossos e das nossas antepassadas pelos espaços artísticos. Pessoas afro-brasileiras construíram esse país. Pessoas afro-brasileiras constroem esse país. Com muito suor. Com muita força. Com muita luta e resistência. Somos responsáveis pelo desenvolvimento econômico, por reformulações político-jurídicas e pela diversidade cultural do Brasil.


Em 2017, Os Negros. Em 2018, Grupo Traços. Em 2018, Revoadas. Em 2018, Coletivo de Teatro Negro Espelho. Em 2019, reuniões periódicas de estudantes negros da instituição, desenvolvendo ações e intervenções que reforçam as nossas artes. Pelo aquilombamento, atraímos olhares para a nossa resistência e, principalmente, para nossas narrativas artísticas. Pelo diálogo, temos construído novos paradigmas na instituição que, aos poucos, vêm mudando o seu olhar sobre nossas histórias.


Coletivo Akofena, espetáculo 'Revoadas' - Fotografia: Ariane Lazário


Muitos e muitas vieram antes de nós, adubando o solo para que pudéssemos fazer parte desse cuidado com a terra. Para que pudéssemos florescer e plantar novas sementes para que outros negros e negras sintam-se acolhidos em coletividade.


Somos múltiplos. Somos diversos. Somos plurais. Demarcamos o curso de nossas trajetórias em um espaço de interconexões.


Nós somos a ancestralidade potente e presente em Palmares, em Manzos, em Mangueiras, em Angolas. Nós somos traços que revoam sobre espelhos.

Cena 'Apoética' de Jéssica Alcântara e Alex Teixeira, apresentada no MOSTRA TU 2019 - Fotografia: Ariane Lazário


 


Alex Teixeira: bacharel em Direito, modalidade integral, pela Escola Superior Dom Hélder Câmara; graduando em Letras, licenciatura Português, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador nas áreas de Ciências Penais e Criminologia, das Relações Étnico-raciais e da Linguística Textual.

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