Por Vinícius Guedes
Não me lembro exatamente quantos anos eu tinha quando vi o 1º espetáculo de Circo da minha vida. Sei apenas que fomos em família assistir às peripécias dos palhaços, cuspidores de fogo, equilibristas em monociclos e em cordas bambas, aéreas, lá no alto entre as luzes. Lembro-me de ter os olhos brilhantes e sorriso aberto àquela arte que se estendia na minha frente.
Meu nome é Vinícius Guedes Barbosa, ator, circense, poeta, professor, encenador, instalador, aspirante a dançarino, artesão, produtor, videomaker, construtor e todas as mil e uma funções que nós artistas independentes exercitamos incansavelmente todos os dias. Comecei, como muitos artistas, na escola e na igreja. Era impressionante como em toda e qualquer oportunidade eu era o primeiro a me voluntariar para a peça de teatro, apresentação de dia das mães, natal, festa junina, trabalhos escolares, etc. Sempre fui inquieto, agitado, ansioso, com mais energia do que conseguia gastar, curioso, admirado e animado por estar no palco, em cena, em estar diante das pessoas dançando, contando uma poesia ou em uma pequena peça familiar.
Aos 15 anos, conheci o programa Valores de Minas, onde iniciei um curso de Teatro que começou a despertar em mim o desejo de seguir essa carreira das Artes, tão maravilhosa e por vezes tortuosa. Conheci, nesta mesma época, o Circo e mais uma vez me vi maravilhado com os aparelhos aéreos, com os mortais e com a inteligência corporal proprioceptiva daqueles acrobatas, com o tônus muscular e a energia incansável dos acrobatas aéreos que despencavam em quedas elaboradas e surreais.
Inicia-se aí mais um compartimento na minha maletinha de ferramentas artísticas. A união do Teatro e todas suas possibilidades artísticas com o Circo como algo que eu fazia mais por diversão, mas que já condicionava meu corpo, tornando-o mais forte, mais resistente, mais ágil, mais flexível, mais atento e mais disponível para o jogo cênico. Naquele momento, me tornei um circense enérgico, que treinava à tarde por 2 ou 3 horas no tecido acrobático dentro da Trupe Tralha Escola de Circo e que,à noite, me metamorfoseava em um ator ainda mais enérgico e agitado, que ia para o Teatro Universitário da UFMG (T.U). Isso porque, naquele momento, eu já não estava mais apenas fazendo Circo, eu também estava fazendo Teatro todas as noites de segunda a segunda, faça chuva ou faça sol.
Foi no T.U, sob o olhar de tantos talentosos, rígidos e bondosos mestres e mestras, que se iniciou a longa e ainda não concluída estrada do controle da energia e da consciência corporal para se estar em cena e/ou para se fazer um malabarismo bem feito.
Foi lá que eu aprendi a ser um ator potente, mas que não mais derramava energia em excesso por todos os lados, aprendi a ser um circense mais responsável com meu corpo e a cuidar melhor dos meus companheiros de cena, aprendi a não separar o Vinícius Circense do Vinícius Ator e que o caminho está justamente nesses entroncamentos e encruzilhadas de possibilidades cênicas.
O tempo passa, me formo no T.U e já não faço mais Circo. Por alguma razão, naquele momento, resolvi abandonar completamente o Circo e me focar exclusivamente no Teatro. Fiz oficinas, conheci grupos, o Espaço Comum Luiz Estrela, fiz coisas e me tornei professor de Teatro e Circo em uma Escola Estadual perto da minha casa. A partir dali, o aluno não era mais apenas aluno, mas também professor de crianças e adolescentes. Mas, como juntar Teatro e Circo para crianças? Resposta: use todas as ferramentas da sua malinha artística. Foi incrível e maravilhoso ter a oportunidade de dar aula e de juntar duas áreas tão próximas e tão conflitantes dentro de mim. Eu precisava dar aula de Teatro, mas tinha alunos tímidos e preguiçosos e, ao mesmo tempo, precisava organizar outras crianças com muita energia, que não paravam quietas e impossibilitavam o andamento de uma aula. Ainda bem que a ferramenta do Circo se faz cheia de possibilidades e maravilhas.
Elaborei, então, meus planos de aula: usar o Circo para gastar a energia das crianças mais agitadas e aumentar a energia das crianças mais preguiçosas. Com alunos mais confiantes e conscientes de seus próprios corpos, eu terei atores mais confiantes e conscientes de seus próprios corpos. Segundo o dicionário, a flexibilidade é a capacidade de realizar uma série de exercícios que visam aumentar o trabalho do músculo; então, comecei a trabalhar alongamentos dinâmicos e estáticos, o que se fazia benéfico nas outras aulas, pois um músculo flexível e trabalhado responde melhor aos comandos cerebrais.
Sendo assim, eu tinha alunos mais ativos, mais dinâmicos e mais dispostos durante as aulas de Teatro, pois seus corpos já estavam condicionados a serem mais ativos. Trabalhei malabares com claves e bolinhas, pois como a técnica do malabares condiciona o cérebro e o corpo a obedecer uma contagem e um ritmo, eu tinha alunos que decoravam os textos mais rápido e melhor, com uma inteligência corporal e reativa que se fazia muito útil durante os jogos e exercícios cênicos trabalhados nas aulas. E, apesar de parecer algo trivial, me lembrei de como o malabares me ensinou a controlar a minha energia e talvez até “meditar” por horas enquanto executava a técnica, algo que se refletiu em meus alunos mais bagunceiros e inquietos, que se tornavam mais concentrados e calmos na técnica do malabares e que ainda levavam essas conquistas para minha aula de Teatro (o que era ótimo) e para outras aulas da escola regular como Matemática, Português, Ciências, etc. Trabalhei abdominais e portagens coletivas, pois era algo mágico e sensacional que os alunos nunca tinham visto e que trabalhava a força desses alunos, liberava endorfina e líquido sinovial para lubrificar as articulações, os deixava alegres com a possibilidade do desafio de se fazer uma segunda altura ou uma pirâmide, o que se refletia nas aulas, pois durante a montagem de uma cena, por exemplo, os alunos já tinham estruturas cênicas, possibilidades de cena, de malabares, de portagens, de formas corporais que eles usavam como “brincadeira”, mas que eram perfeitas para a cena, já que eram formas de expressão artísticas produzidas por eles mesmos. Como dizia Fernando Limoeiro: “Repita, repita e repita”. Com essa experiência notei que o treino consciente e a repetição produziram resultados muito fáceis de se observar porque o corpo, uma vez que se acostumou com o movimento, agora o realiza de forma mais orgânica e fluida.
Mais uma passagem de tempo e eu me reconecto com o Circo no Curso Técnico de Circo do CICALT, já dou aula de Teatro e Circo em outro lugar, num Centro de Internação Socioeducativo para adolescentes infratores e, ao mesmo tempo, inicio a pesquisa de um espetáculo com um grande ator e amigo, Dudu Melo, deficiente visual. Com esses novos alunos busquei o mesmo caminho de antes, entretanto, com algumas adaptações e variações, pois já eram adolescentes e não mais crianças e estavam privados de liberdade, o que impossibilitava mostras, apresentações e espetáculos. Essa experiência me deu a oportunidade de trabalhar o Circo por seu viés social, levando alguma novidade, arte ou possibilidade artística para jovens numa situação tão vulnerável. Lá eu aprendi a me adaptar às necessidades deles, às histórias de vida deles e muito mais que pensar no Circo como um lugar de exercícios físicos, músculos, alongamentos e virtuosismo técnico. O Circo, naquele contexto, tinha um caráter muito mais terapêutico e lúdico que um caráter profissional e artístico.
Este ator, agora, além de um professor melhor também era aluno à noite e um aluno mais tranquilo, mais calmo devido a seu trabalho com um ator cego que o ensinou a ter paciência, a respirar e a concentrar-se, a adaptar seu ritmo e a conter a energia imensa que habita este corpo. Isso me ajudou muito durante as aulas de acrobacias de solo, onde eu, ansioso e medroso, tinha de ter a energia corporal exata para executar um mortal a frente ou uma rondada mortal, nem mais nem menos, mas na medida exata, pois como meus machucados e diversos olhos roxos podem provar, quando se ultrapassa um limite seguro é onde ocorrem os machucados e acidentes. A consciência corporal adquirida com o Teatro era ótima para a cena, mas o Circo exigia algo além, mais intenso e ao mesmo tempo mais responsivo com seu próprio corpo.
Pude perceber a partir desse momento como minha evolução no Circo refletia diretamente no meu fazer teatral diário. Os abdominais intensos das aulas de acrobacia me davam músculos mais fortes e mais resistentes para estar mais centrado em cena e mais vivo, os exercícios aeróbicos e de exaustão me davam um controle melhor da respiração e uma consciência mais aprimorada dessa respiração, possibilitando que meu texto melhorasse e me deixando menos ansioso, já que a partir do controle da respiração aprendi também a controlar melhor o nervosismo e a ansiedade, o que me tornou um ator mais calmo. Com os alongamentos e repetições de exercícios me tornei mais flexível e mais ágil, o que, sem dúvida, é ótimo para a cena teatral, pois deixa o corpo mais pronto para o jogo cênico e para reagir aos estímulos.
O corpo do artista de Teatro, em teoria, deve ser um corpo forte, resistente, ágil, alerta, prático, sensível, vivo, crível, extra cotidiano e disponível para o jogo cênico. Acredito que todas essas categorias podem ser alcançadas com o treinamento e pela vivência Circense.
O Circo, através de todas as suas possibilidades, proporciona condicionamentos físico e mental potentes para a criação do ator, pois o corpo é o mesmo: os movimentos aprendidos por esse corpo para a execução de uma estrelinha podem ser usados posteriormente em uma cena de Teatro, os músculos são os mesmos ainda que o movimento executado não seja uma estrelinha. A inteligência ou consciência corporal age sobre o mesmo corpo, tornando-o sensível aos estímulos cênicos e propostas do jogo teatral, o que não é nada mal para nós atores que buscamos sempre nos aperfeiçoar em nossa arte.
Hoje, pratico Circo no Espaço CircoLar e pratico o Teatro diariamente, faça chuva ou faça sol. O Circo não deixa meu corpo esquecer que ele é um corpo cênico, extra cotidiano e pulsante, um corpo de Teatro, de um ator; enquanto o Teatro não me deixa esquecer que o artista nunca é a favor, sempre é contra, nem que seja contra a gravidade ao se dependurar num tecido e trapézio, que meu corpo cênico está em relação com o outro e com o espaço cênico e que a potência alcançada com o Circo pode me tornar um ator mais potente e consciente de si mesmo, transportado esse corpo técnico, virtuoso e Circense para a cena.
Enfim… é isso, não sei se me fiz entender, ou se o entroncamento desses dois caminhos serve apenas para me mover para frente nessa longa estrada que é a Arte. Sei apenas que devemos nos cuidar, cuidar da nossa ferramenta de trabalho, cuidar de nós e do nosso corpo, porque nosso corpo é político e é com esse corpo-artístico-político que criamos Arte e mudamos o mundo. Se cuidem, bebam água, se exercitem e resistam, pois em tempos como estes que vivemos no Brasil de caos cruento e tão difícil para a Cultura, precisamos dos nossos artistas fortes, saudáveis e vivos para quando tudo isso passar.
Vinícius Guedes Barbosa é ator e circense, morador de Contagem. Formação: Valores de Minas, Teatro Universitário da UFMG, Técnico em Artes Circenses pelo Centro Interescolar de Cultura Arte Linguagens e Tecnologia e Ator na Pigmentar Companhia. Um artista
independente que transita entre o Circo e o Teatro, um aquariano elétrico, de 28 anos com o sonho de mudar o mundo com sua arte.
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