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O TEATRO COMO FRESTA E MOVIMENTO MULTIPLICADOR DE FRESTAS

Por Júlia Camargos


Esse texto aborda algumas reflexões que desenvolvi durante minha pesquisa de mestrado. Não por coincidência, parte significativa das questões que preencheram a investigação teve seus embriões plantados ainda na minha adolescência, época em que comecei a fazer teatro. Portanto, antes de adentrar especificamente no campo das reflexões da dissertação, farei um breve relato da minha experiência como aluna de anos atrás, para contextualizar melhor tais questões.


Resumidamente, eu era uma estudante média de classe média que estudava em uma escola média. Eu não gostava da minha escola e, meio que inconscientemente, questionava o currículo, a relação com os professores e as formas de avaliação; acredito que as minhas impressões não foram e não são incomuns. Descobri anos depois, já na graduação, estudando Paulo Freire, que a educação que eu tive foi uma educação bancária e burocrata – baseada em números, resultados, conteúdo e nada mais. Ainda me lembro da viva satisfação que senti em me encontrar nas palavras de Freire pela primeira vez, onde continuo, felizmente, me encontrando.


Na escola, nunca vou me esquecer de quando li “A hora da estrela” de Lispector e contei a história para todas as coleguinhas fazerem a prova de literatura, mas recebi o único zero da turma ao escrever a minha própria interpretação do livro. Ao questionar a professora sobre a nota, ela me respondeu que não queria uma resposta inventada, mas o que ela ensinou na aula, alertando-me de que aquela poderia ser até uma pergunta de vestibular em que eu, evidentemente, fracassaria. Enfim, ali não havia espaço para criar, imaginar e construir sentidos, eu nem sabia ao certo do que sentia falta na escola, mas a constante sensação de inadequação prevalecia naquele espaço. Assim, eu escutei quando a minha rebeldia escolar me pediu para buscar por outras atividades, outros ambientes, outras relações. O resultado dessa busca, que aconteceu inclusive fora dos muros da escola, foi o meu encontro com o teatro, que acabou ficando e que permanece ainda hoje.


Naquela época, o contato com o teatro de alguma forma foi capaz de rachar um bocado de engessamentos que o processo de escolarização me provocou. Vi na prática que o conhecimento não precisava ser só construído com base em sentenças verdadeiras ou falsas e que as múltiplas escolhas não precisavam ser só quatro opções entre A, B, C e D, havia muita coisa além dos gabaritos e boletins. Em suma, eu percebia uma fresta em mim mesma provocada pelo teatro, que trouxe um frescor e certo entendimento de que existiam outras formas de produzir conhecimento e relações com o mundo. Confesso que, até ali, essa percepção era superficial, mas foi suficiente para, intuitivamente, me dedicar ao teatro como profissão e me tornar professora da área. Segui meu caminho na licenciatura e, anos depois [... aqui há uma significativa passagem de tempo, algumas experiências, reflexões, achados e incertezas...], me encontrei pesquisadora em uma investigação, onde pude refletir mais profundamente sobre o que, afinal de contas, era aquela fresta que eu achava que o teatro tinha me provocado, observando a relação de outras pessoas com o teatro.


A minha dissertação é intitulada “Teatro que fica: sentidos atribuídos por jovens à sua experiência de formação teatral”. O objetivo da pesquisa foi compreender quais marcas o teatro, como prática artística e pedagógica, pode deixar em jovens estudantes. Ou melhor, como jovens se sentem marcadas e marcados pela experiência de formação teatral.


O que a gente pode aprender com o teatro? Quais relações podemos estabelecer com o entorno a partir dele? O que ele pode movimentar em nós como mudança? Afinal, o que fica do teatro na gente?

Registro por Emerson Fernandes da peça “Teatro que fica”.

A pesquisa foi desenvolvida no Cicalt – Valores de Minas. Uma instituição de ensino de artes em BH, voltada essencialmente para jovens de camadas populares, que foi configurada inicialmente como um programa social (2005 – 2015) e que recentemente se tornou uma escola técnica (desde 2016). Seis jovens – quatro mulheres e dois homens – participaram da investigação e, a partir de entrevistas narrativas e um processo criativo, colhemos os dados que revelaram os sentidos que elas e eles atribuíam ao teatro. Sinteticamente, foi possível perceber que as repercussões da formação teatral se apresentaram em diferentes dimensões na vida das/os jovens, como na construção de saberes que transcorrem outras vias além da racionalidade, como a criatividade e a sensibilidade. Foi notável também o desenvolvimento de um pensamento crítico sobre as dinâmicas sociais e da construção de uma postura cidadã e participativa. O teatro mostrou influência ainda na forma como as/os jovens vivenciam seus processos identitários, na elaboração das noções de singularidade e alteridade em meio a uma coletividade diversa. Por fim, todos esses elementos contribuíram para a reflexão de seus projetos de vida, que apresentam o fazer teatral em continuidade, de forma livre ou profissional.


Massa! Mas, o que isso significa? Ao chegar ao final da pesquisa, prestes a escrever as considerações finais, me senti presa ao “academiquês”, presa à estrutura – já já falo mais disso. Eu observava os dados coletados e via uma espécie de lista de benefícios para jovens que estudam teatro, mas eu queria dizer mais do que isso. Curiosamente, foi um termo acadêmico que me ajudou a juntar o resto das peças. O conceito parecia simples, mas acabou revelando muitas complexidades que eu não percebia inicialmente, especialmente quando consegui descolá-lo do livro e observá-lo, de fato, na vida.


O conceito é socialização. Quando pensamos na palavra socialização, imaginamos pessoas se relacionando socialmente, mas não nos atentamos que são as relações sociais que nos formam enquanto sujeitos. As teorias clássicas da sociologia, com representantes como Durkheim [1958-1917], indicavam que a socialização seria a internalização fiel dos modos sociais pelos indivíduos, mediada por instituições como a família, a escola e a igreja. Com as mudanças ocorridas ao longo do século XX no ocidente, especialmente a partir dos anos 70, passou-se a observar a socialização como fenômeno mais amplo, ocorrendo em mais espaços e com menor poder de coerção das estruturas sociais sobre os indivíduos. Mais recentemente, a socialização é vista de forma ainda mais aberta e dinâmica, na qual os sujeitos se constroem singularmente por escolhas autônomas em contato com diferentes ambientes sociais. Apesar dessa inaugurada autonomia na construção de si, o sujeito não está livre e deslocado do sistema. O advento da singularização é mais uma dinâmica social. O indivíduo ainda é fruto da sociedade, e mesmo que haja mais pluralidade nas experiências de socialização, ainda existem “ordens sociais tradicionais” que permanecem perenes.


Estamos no Brasil e nossa socialização se dá na continuidade de um processo histórico, social e cultural de dominação que podemos chamar de colonialidade, presente nas estruturas sociais e, por consequência, nas nossas subjetividades. O fato é que o sistema de regulação que ainda impera em nossa sociedade está o tempo inteiro nos condicionando às lógicas de produção do capitalismo e às lógicas de dominação do patriarcado, seja no processo de educação formal ou nas experiências variadas de socialização. Cabe dizer que diferentes pessoas sofrem diferentes opressões nessa lógica e há ainda quem se beneficie da sua perpetuação – quanto mais longe identitariamente desse modelo de quem maior a opressão que o sujeito enfrenta. Nesse sentido, as pessoas, mas especialmente as juventudes, que estão no auge do processo de construção de si, podem vivenciar dois tipos de socialização: as que as tentam ordenar, ou seja, fazê-las peça de manutenção desse sistema, e as que permitem a expressão de sua espontaneidade.


Nesse sentido, podemos entender esse último tipo de socialização não somente como mera oportunidade de se expressar livremente, mas espaço de construção de sentidos que tensionam e questionam a lógica sistêmica dominante. Sob essa ótica, ao reavaliar os efeitos da formação teatral para as/os jovens da pesquisa, notei que se tratavam de saberes, experiências e habilidades que, em grande parte, vão à contramão de valores tradicionalmente impostos. Ali, entendi com mais lucidez também o porquê, afinal de contas, senti aquele frescor quando comecei a fazer teatro na adolescência. Mas, friso: não é possível dizer que qualquer experiência teatral pode provocar isso, é preciso que a instituição e seus docentes estejam em algum nível engajadas em encarar a experiência de ensino e aprendizagem teatral como um espaço de atenção à subjetividade, de prazer no desenvolver do conhecimento, de emancipação do indivíduo.


Portanto, o teatro como fresta significa um espaço/oportunidade/experiência que a gente tem de colocar em cheque os códigos sociais normativos que recebemos tradicionalmente. O sistema existe, está em todas e todos e sua tendência é permanecer assim a não ser que haja um tensionamento.

O teatro como fresta pode fazer com que as pessoas, em contato com ele, percebam a internalização do sistema em si mesmas. Um sujeito, percebendo o sistema em si e como ele o oprime, pode iniciar uma rachadura, que depois, dará lugar a uma fresta particular nele mesmo. Assim, carregando sua fresta e reconhecendo a sua importância, o sujeito pode propor novos movimentos provocadores dessa desestruturação, se tornando um multiplicador de frestas. Por fim, em si o teatro pode ser fresta, mas o seu potencial está mesmo nas frestas que ele é capaz de provocar nas pessoas.



Registro por Emerson Fernandes da peça “Teatro que fica”.

Para quem quiser acessar a dissertação completa: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/34460


 

¹ Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias.

 

Júlia Camargos é atriz, diretora e professora de teatro. Sua pesquisa é voltada para o ensino do teatro em uma perspectiva emancipadora, envolvendo estudos sobre gênero e decolonialidade. É formada no curso técnico do Teatro Universitário da UFMG (2012), graduada em licenciatura em teatro pela UFMG (2015) e mestra em Educação pela FaE - UFMG (2020). É integrante do Coletivo Mulheres Encenadoras que investiga aspectos diversos da direção feminina. Já fez parte do corpo docente da Escola de Teatro do Cefart (Centro de Formação Artística e Tecnológica), é colaboradora na Escola Espaço Cênico e desde 2017 atua como professora no Cicalt - Valores de Minas.

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