top of page

OS MANTOS DE MENINOS PIPAS

RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA PERFORMATIVA NA COMEMORAÇÃO DO DIA NACIONAL DA LUTA ANTIMANICOMIAL NO CERSAMI NORDESTE



Por Filipe Arêdes



Quando éramos nós e muros

Foto: Horácius de Jesus

Esta é uma tentativa de fazer contexto. Uma aproximação. É como um convite a adentrar os muros de uma importante instituição chamada Centro de Referência em Saúde Mental Infantil[1] (CERSAMI), e que é fruto de um processo histórico conhecido como o Movimento da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica. Antes disso, a loucura era encarcerada. Morria-se de fome e frio e maus tratos e choques e camisas de força e abandono e solidão. Pense no momento em que estamos vivendo. Isolados. Era próximo disso. Mas muito pior. Não tinha saída. Mesmo. E foi preciso coragem e revolta e militância e organização política e empatia e luta para que as coisas mudassem.




E foram necessárias novas leis e instituições e nova forma de cuidado e liberdade e humanização e derrubada de muros e fim de manicômios e construção de uma política pública efetiva de saúde mental e mais e mais invenções. E foi preciso arte.

Nise da Silveira, Mário Pedrosa, Emygdio de Barros, Adelina Gomes, Fernando Diniz, Carlos Pertuis, Fernando Pedrosa, Elisio Canal, Stella do Patrocínio, Arthus Bispo do Rosário, Estamira. E foi preciso arte. Juliana Barreto,Ellon Rabin, Germana,Edmundo Veloso Caetano, Viviane de Cássia, Ludmila, Lidia Ramos, Jacqueline, Rogério, Emilha. E foi preciso arte. Horacius de Jesus, Luan, Daniel, Wesley, Davi, Guilherme, Thais, Talita, Leandro, Caio, Christian, Fabiana.

Nas ruas – não

Dois mil e vinte. Março. Pandemia. Corona vírus. Isolamento social. Distanciamento. Fique em casa. Máscara. Álcool em gel. Bolsonaro. AAAAAAAAAAAAAAAAH! Esse ano não vamos sair para as ruas como de costume com o nosso desfile de carnaval temporão. O 18tão. No Dia Nacional da Luta Antimanicomial, ficaremos em nossos cantos. Dessa vez, não ocuparemos a Praça da Liberdade, descendo até a Afonso Pena, desembocando na Praça da Estação.Estamos em isolamento. Ninguém nunca imaginou uma coisa dessas. Essa pandemia! Esse Bolsonaro! Mas, vai ter de acontecer, de outra maneira, mas nas ruas não. Mas como é que se celebra uma luta pela liberdade, pelo fim dos manicômios, “para que nunca mais se esqueça, para que nunca mais aconteça” dentro dos muros das instituições? É uma contradição. Não vai ter a mesma graça, não vai ter o mesmo peso político. Algum jeito vamos ter de arrumar! Vai ter de acontecer! E como vão ficar os pacientes e familiares? E as fantasias do 18 de Maio, a quantas ficarão? Aquele verter de cores pelas avenidas. A alegria estampada no rosto de quem vai, de quem viu. E a marchinha da “Escola de Samba Liberdade Ainda que TamTam” desse ano? Vamos cantar como? Por vídeo? No Zoom?



Foto: Horácius de Jesus

Vai ter de

E se nós, aqui no CERSAMI Nordeste[2], fizéssemos uma experimentação? É, uma ação performativa. Nós poderíamos reunir os meninos aqui do serviço. Esses meninos pipas. Chamamos todos se possível. A gente constrói uns mantos. Eu me lembro daquele construído pelo Arthur Bispo do Rosário para o dia do Juízo Final, lembra? Aquele que viveu anos dentro de um Manicômio, no Rio de Janeiro, e recebeu um dia o chamado de Deus a reconstruir o mundo com suas linhas, tecidos e objetos que foi recolhendo ao longo dos tempos, frutos da memória, essa matéria viva da arte? E se fizéssemos um manto de pipas? Os meninos adoram soltar pipa. Até a “Ala das Crianças”, do Desfile do 18 de Maio desse ano, sairia com esse tema. Lembra também dos parangolés do Hélio Oiticica? Em que ele propunha às pessoas que saíssem do lugar de observador da obra de arte e passassem a ser participantes, ao brincarem e dançarem com aqueles tecidos? Pois é, eu tenho uns tecidos lá em casa e poderia trazer aqui, e propor para os meninos interagirem. Dançarem, sabe? Dançarem as cores, essa potência de vida, essa diversidade. Poderíamos produzir umas fotos. Fotos, não. Vamos fazer um vídeo!


Vamos construir algumas pílulas do cotidiano para apresentar que aqui, tratamento não é só remédio, não. A gente faz laço e empina pipa!

A gente poderia, então, começar a registrar o dia a dia aqui no serviço, algum momento poético, uma fala durante a Assembleia de Usuários, alguma coisa que capturasse o nosso olhar. Será que eles vão topar? Vamos conversar com eles e apresentar a proposta.

Acontecimento

Hoje, vamos fazer um experimento, para que não deixemos passar em branco o 18 de Maio. Vocês sabem da importância dessa data. A nossa proposta é a de construir um manto de pipas. O Horacius já até construiu algumas com vocês e hoje mais cedo eu vi vocês confeccionando rabiolas. Eu trouxe alguns tecidos. Vamos brincar com esses tecidos coloridos. Vamos produzir um vídeo e quem se sentir a vontade para falar alguma coisa, soltar alguma rima, fica a vontade também. Alguém pode me ajudar a arrumar isso aqui? O que é que tem que fazer? É só brincar! Vamos compor algumas imagens com esses tecidos. É só isso, você topa?

Ps.: Agradeço a interlocução do Lucas Emanuel e Jorge Miranda para a produção desse texto. Agradeço a parceria do artista Horacius de Jesus, com quem foi construído o experimento aqui apresentado e, também, aos adolescentes usuários do CERSAMI Nordeste e aos trabalhadores, em especial, a gerente Ana Cristina Torga, que toparam de forma generosa a nossa proposta. Por fim, agradeço o convite feito pela equipe do blog Mistura, que me possibilitou revisitar a minha prática e amadurecer o olhar sobre o que foi realizado e que ainda reverbera.



Foto: Horácius de Jesus

Foto: Horácius de Jesus



 

Notas

[1] Os Centros de Referencia em Saúde Mental (CERSAM) são serviços substitutivos aos Hospitais Psiquiátricos, cuja proposta de tratamento é a garantia do cuidado em liberdade e da oferta de tratamento próximo de sua casa/território, fortalecendo seus vínculos sócio-afetivos e trabalhando para a sua autonomia e protagonismo em seu próprio tratamento. Esses serviços fazem parte da rede pública de saúde, o SUS.


[2] O CERSAMI Nordeste é um dos três serviços da cidade de Belo Horizonte que atende a demanda de urgência em saúde mental de crianças e adolescentes.

 

REFERÊNCIAS

  • OLIVEIRA, P. F. de ; MELO JUNIOR, W. ; Silva, M.V. . Afetividade, Liberdade e Atividade: o tripé terapêutico de Nise da Silveira no Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados. Rev. Pesquisas e Práticas Psicossociais,, v. 12, p. 23-35, 2017.

  • ROLNIK, S. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Concinnitas (Online) (Rio de Janeiro), v. 1, p. 104-112, 2015.

  • SILVEIRA, N. Imagens do Inconsciente. Petropolis, RJ: Vozes, 2015.

 

Filipe Arêdes é psicólogo e ator. Pós-graduando em Psicologia Analítica pelo ICHTHYS Instituto (Curitiba/PR). Atualmente trabalha como psicólogo clínico na abordagem analítica junguiana e desenvolve pesquisas no campo da performance arte e dança ritual. Atuou na interface entre Arte e Saúde Mental, como Assistente de Direção do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogadose como Oficineiro de Artes do CERSAMI Nordeste. Foi aluno do Teatro Universitário (UFMG), formando da turma de 2016 com o espetáculo “Sétimo –

Roube um pouco menos”.

85 visualizações0 comentário
bottom of page