Por Dodi Leal
Me dei a pensar hoje sobre o desafio poético com o qual me presenteei há alguns anos: LA DANZA DE LA PAJARITA. O programa é simples: vestir-me com roupas de tecido longo e movimentar-me livremente em uma coreografia em diálogo com o espaço público, explorando linhas urbanas no meu corpo e gestos.
Tenho um traje preferido para esta experiência: uma calçaia (calça + saia) vermelha. Uso-a como um estímulo ao movimento que ela permite, por ampliar minha imaginação sobre o que pode meu corpo trans.
Não foram muitas cidades ainda nas quais realizei esta experiência. No entanto, cada uma delas guarda um quê de mistério, dadas as suas distâncias, tendo como referente minha procedência. Sou de São Paulo e vivo na Bahia. A pajarita nasceu durante o percurso de minha pesquisa de doutorado no Instituto de Psicologia da USP, sobre performatividade transgênera, quando me dei a fazer uma pesquisa genealógica de minha família, como um modo de tentar compreender o que seria a categoria transcestralidade. Bem, aprendi com a autohistória de Anzaldúa que a mestiçagem pela qual passou meu corpo, do ponto de vista das origens étnicas indígenas (meu pai provém do sul do Piauí) e brancas (a família da minha mãe provém do norte de Portugal e do sul da Espanha), tem que ver com uma hibridização de gênero também. Por seu turno, com a auto-genealogia de Jodorowsky, aprendi a asserção de Jean Cocteau de que a árvore genealógica é a árvore onde melhor canta um pássaro.
Bom, daí me lembro que, na minha pesquisa, cheguei a formular a concepção de árvore transgênero-alógica (em contraste com a árvore cisgênero-lógica) como sendo o processo de criação poética de gênero sobre nossa própria história. Então, me tornei minha própria passarinha e resolvi ir dançar nas cidades de procedência da minha família para perceber novas filiações, novas possibilidades de constituir-me enquanto uma mulher que sou.
Mas não apenas dancei. Quando dancei, dancei em outras cidades que não constam na árvore cisgênero-lógica reprodutivista.
Sempre procurei o registro fotográfico destas experiências e, em geral, pedia para alguém que passava pelos lugares para tirar umas fotos. E dizia que era uma performance, para que tirasse várias fotos seguidas enquanto fazia minha dança.
Apenas ano passado, 2019, já um ano depois de concluir o doutorado, dancei em Madrid e Montilla na Espanha; em Grenoble na França; em Shanghai na China; e na Cidade do México, no México.
Eis que chega a pandemia e fico confinada em minha própria casa, em Porto Seguro. A passarinha tinha a dança como uma forma de voar, de deslocamento. O que seria, então, dançar confinada? Como explorar a própria casa. Hoje já está perto de fazer um mês que fiz uma experiência muito libertadora da pajarita em minha casa, no dia 24/05/2020.
Criei a obra de video-dança The confirmed confinement of pajarita com a qual experimentei dançar em minha própria casa. Quase um mês depois, sem ter realizado novamente uma outra experiência semelhante a esta, percebo que preciso continuar a dançar, mesmo no confinamento. Valorizo viver em situação de menos telas e mais árvores. De menos lives e mais loves.
Dodi Leal
Porto Seguro / Bahia, Brasil
20/06/2020
Dodi Leal é professora do CFA e do IHAC-CSC (UFSB). Doutora em Psicologia Social (IP-USP), licenciada em Artes Cênicas (ECA-USP). Fez estágio doutoral em Estudos Teatrais e Performativos na Universidade de Coimbra. Habilitada em Cinema e vídeo no Baccalauréat interdisciplinaire en arts da Université du Québec à Chicoutimi (UQAC, Québec-Canadá).
Autora do livro 'LUZVESTI: iluminação cênica, corpomídia e desobediências de gênero' (Salvador: Devires, 2018).
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