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TEATRO AO(S) VIVO(S) OU DIVAGAÇÕES DE UM ESPECTADOR ISOLADO

Atualizado: 10 de out. de 2020

Por Thomaz Cannizza


Nós falamos, escrevemos, fazemos linguagens e é assim que as civilizações se curam. Sei que o mundo está machucado e sangrando e embora seja importante não ignorar a sua dor, também é crítico recusar-se a sucumbir à sua malevolência. Como o fracasso, o caos contém informações que podem levar ao conhecimento, à sabedoria. Assim como a arte.

Toni Morrison


Tô escrevendo esse texto no epicentro de alguma coisa. O que vem depois disso aqui ainda é um breu sem forma. O que veio antes tá dolorosamente embaçado na distância. No entanto, há algo acontecendo aqui e agora. Por isso, escrevo. Quero escrever sobre o Teatro e a falta que ele me faz, mas não vou me debruçar em lamentações ou saudosismos. Traduzo minha abstinência em um texto que relata minha busca pelos paradeiros do Teatro em um contexto pandêmico de isolamento social. Nessa minha busca, sou espectador e é desse lugar que escrevo. Escrevo sobre como me apercebo espectador nessas novas configurações de ir ao encontro com a arte e, ainda, sobre duas experiências singulares que tive recentemente, proporcionadas por fazedores de teatro que migraram para o espaço virtual.

Mas, não se engane, é tudo divagação.

Abro mão de quaisquer pretensões de dizer se “isso” ou “aquilo” é Teatro, até porque a quantidade de tempo em que estamos convivendo em situação de isolamento social é insuficiente para fincar verdades absolutas. Por isso, procuro cautela nas escolhas de palavras e, também por isso, não apenas escrevo, mas divago. Se o breu adiante ainda não tomou forma, porque minhas divagações deveriam tomar? Escrevo um texto que fala de um espectador da arte que surge no epicentro do que está acontecendo aqui e agora. No entanto, é essencial não esquecer que o texto que escrevo aqui fala, acima de tudo, de uma arte germinada não apenas do ócio criativo, não apenas do simples desejo, mas da crueza da sobrevivência.

Como arte da aglomeração, o teatro, nesse momento em que escrevo esse texto (Agosto de 2020), sofre da dissolução do que costumamos considerar uma de suas características fundamentais: seu acontecimento como assembleia. Essa característica pode ser datada até suas origens de adorações dionisíacas na Grécia, durante as quais todas as atividades comerciais da pólis eram suspensas. Em seu livro A partilha do sensível, o filósofo francês Jacques Rancière disseca uma ideia de “partilha” encadeada em acontecimentos artísticos como o teatro. A partilha do sensível sustenta um significado duplo: tanto de uma vivência coletiva mútua, quanto de seu repartimento entre as individualidades de seus espectadores.

Rancière ainda identifica uma dimensão política nessa ideia de partilha do sensível, já que há parcelas da população que não têm acesso a essas cerimônias de comunidade, que “não podem estar em outro lugar porque o trabalho não espera”.[1] Em um contexto de isolamento social, no qual os acontecimentos artísticos são fruídos à distância e virtualmente, essas experiências passam a ser distribuídas entre espectadores que estão em espaços variáveis, como suas residências, locais de trabalho, meios de transporte em trânsito, etc.


A impossibilidade de integrar uma experiência estética comum é substituída por uma abertura na acessibilidade devido à mobilidade de aparelhos. O espectador, pelo virtual, integra os acontecimentos comuns de onde quer que ele esteja.

Ao falar de dramaturgias do espaço, diretor/autor italiano Eugenio Barba escreve que “um espaço cênico nunca é neutro. [...] Transpiram informações e impõem signos materiais que podem ser acentuados, contrastados, rejeitados, mas não omitidos”.[2] Com a assembleia dissolvida e os teatros esvaziados, aparentemente não há possibilidade de comunicação direta entre espectador e acontecimento. No entanto, percebo que há, certamente, um vínculo: o aparelho. O aparelho eletrônico abarca um terceiro espaço que intervém entre onde acontece a ação e de onde se contempla: o espaço virtual. Lembro-me da ideia de “interface”, que é o espaço que possibilita interação entre aparelho e seu usuário. O prefixo “inter” exprime uma ideia de “estar no meio” e, ainda, de “reciprocidade”.[3]

Escolho partir da ideia de “dramaturgia como textura”, que é postulada por Matteo Bonfitto como a noção que “envolve camadas que são produzidas pelos elementos que compõem o fenômeno teatral e suas inter-relações” (lembrando que aqui não estamos considerando isso o-teatro-propriamente-dito, mas usufruindo de seus parâmetros referenciais para pensar novos âmbitos para um acontecimento cênico).[4] Essa afirmação me leva a considerar que as implicações do espaço virtual impõem uma dramaturgia própria. O acontecimento artístico, por sua vez, pode reconhecê-las ou não, mas suas existências, como Barba coloca, não podem ser omitidas. O espaço virtual se torna parte integrante do seu acontecimento e o aparelho desempenha uma função não só de suporte para visualização, mas para a elaboração daquilo que Bonfitto chama de “ocorrências expressivas que cobrem [...] um continuum que vai do mais ao menos referencial”.[5]

Em Parece loucura mas há método, que a Armazém Cia de Teatro (RJ) chama de “peça de teatro emergencial”, o espectador é colocado diante de um ringue de duelos dramáticos de personagens da safra Shakespeariana. Cada personagem habita uma janelinha da plataforma Zoom. Ao final de cada duelo, uma enquete é aberta em forma de uma janelinha pop-up na qual o espectador seleciona o personagem com quem menos empatizou para, consequentemente, excluí-lo do jogo dramático.

Embora com a câmera e microfone desativados, a Armazém Cia faz do espectador o próprio eixo dramatúrgico do jogo. Aqui, o desenvolvimento da ação cênica depende diretamente das dramaturgias do espectador e a composição destas não se esgota no apreço pelo texto ou a personagem, mas também elementos propostos pelo próprio espaço virtual. A conexão titubeia, a imagem da atriz congela em uma distorção facial enigmática enquanto a voz continua fragmentada ao fundo até imagem e som se reencontrarem. A espacialidade virtual é agente ativo e, por vezes, incontrolável e o espectador inegavelmente vive a experiência sob suas ressonâncias.

Com o subtítulo de “experimento sensorial em confinamento”, Tudo que coube numa VHS,do Grupo Magiluth (PE), propõe uma experiência individualizada entre um integrante do grupo e um espectador no decorrer de 30 minutos. O experimento se desenvolve através de rastros dramatúrgicos que são deixados como memórias de dois personagens em um percurso por plataformas como e-mail, Instagram, WhatsApp e outras em tempo real. A ideia de uma dramaturgia como textura de Matteo Bonfitto pode ser evidenciada novamente aqui, tendo em vista a pluralidade de recursos operacionais que se articulam entre si e que podem ser “entrelaçados de diversas maneiras”.[6] Através dessa concatenação fragmentada de elementos sensoriais, o espectador tece a sua própria dramaturgia ou, como Rancíère coloca: “compõe seu próprio poema com os elementos do poema que tem diante de si”.[7]

Neste experimento, o próprio poema do espectador é tecido através do encontro entre um acontecimento artístico sensorial/virtual e os sentidos e a memória do espectador. Aqui, reside a dialética que é o motor para tecer uma dramaturgia múltipla. O VHS do Magiluth realça o significado que essa dialética tem para o acontecimento artístico e, como coloca Eugenio Barba, explode a “unidade de público”[8], ou seja, valoriza o potencial da arte de criar partilhas do sensível. Partilhas estas que, como vimos anteriormente, se dirigem a um comum (“público”), mas também têm a capacidade de se traduzir em incontáveis significados distintos (“espectador”).

Se a integração de um espaço físico comum se torna irrealizável no isolamento social, as interfaces do espaço digital possibilitam novas formas do vínculo arte/espectador. No entanto, o que me chama à atenção para ambas as experiências virtuais relatadas aqui não é só o fato de que elas propõem uma partilha de espaço, mas também de tempo. Tanto nas instaurações de tensão das votações na “peça emergencial” da Armazém Cia, quanto nos instantes em que o espectador do Magiluth recebe uma sequência notificações no celular em um jogo dramatúrgico cronometrado, percebemos que a simultaneidade atribui à experiência um compasso de tempo real. Dessa forma, a apropriação das interfaces do espaço virtual em conjunto com um diálogo com o espectador na lógica da simultaneidade possibilita a eclosão de presenças. Talvez eu tenha demorado em trazer essa palavra à tona, mas acho que só depois do território percorrido até aqui é que seu uso ganha mais entusiasmo: presença.

“[...] a gente consegue estabelecer uma presença real entre ator e público, por mais que estejamos através de uma câmera ou através de um áudio, mas existe uma presença contínua [...] que é o que faz com que elas acabem o experimento com a sensação de que estivemos lá, sim, na casa delas e nós também, que estamos fazendo, acabamos com a sensação de que eles estiveram aqui dentro da nossa casa.”

(Erivaldo Oliveira, Grupo Magiluth)

Um adendo curioso: certas experiências cênico-virtuais não propõem um diálogo assumido com o espectador e acabam por se manifestarem mais como transmissões. Muitas plataformas, no entanto, disponibilizam uma caixa de chat onde espectadores podem tecer comentários em tempo real.


As reações podem ser codificadas em emojis ou até expressões virtuais como “kkkk” em momentos de riso, por exemplo. Até o momento em que escrevo esse texto, não vivenciei um experimento que integrou a existência desses comentários em seu acontecimento. Em uma dessas sessões, me chamou à atenção um comentário específico que fiz questão de anotar: “9,000 pessoas assistindo! Lotou o teatro!”.

“Teatro é ao vivo, uma experiência única e singular, mas o show não pode parar” – ouvi no início de uma live de teatro filmado. Me peguei divagando sobre a expressão “ao vivo”: “para o vivo”. Rancière considera o teatro uma “forma comunitária exemplar” que, através de uma “coletividade viva”, possibilita a gênese de constituições sensíveis do comum.[9] Quando o autor escolhe a palavra “viva”, se refere à vida que irrompe em um corpo coletivo presente na partilha do sensível. Aqui, divaguei sobre duas experiências que tive que não executaram uma mera transmissão, mas que, em meio à babel do distanciamento social, buscaram se comunicar com indivíduos responsivos, vivos, encontrando frestas na maquinaria da manifestação virtual para traduzir presenças. Embora seja tudo divagação, de uma coisa tenho certeza: como espectador, estou um pouco menos isolado e um pouco mais vivo.




 

Notas

[1] RANCIÈRE, 2009, p. 16.

[2] BARBA, 2010, p. 84.

[3]Para Fábio F. Lima, as interfaces do aparelho eletrônico se constituem de um “apelo visual”, servindo como porta de entrada para o espaço virtual que recebe seu usuário em uma arquitetura de relações tridimensionais entre signos. Nessa arquitetura, o espectador pode se imergir em uma exploração para além das restrições do corpo físico.(LIMA, 2012, p. 34)

[4] BONFITTO, 2011, p. 58.

[5]BONFITTO, 2011, p. 60.

[6]BONFITTO, 2011, p. 58.

[7]RANCIÈRE, 2012, p. 17.

[8]BARBA, 2010, p. 255.

[9]RANCIÈRE, 2012, p. 11.



 

Referências

  • BARBA, Eugenio. Queimar a casa: origens de um diretor. Trad. Patrícia Furtado de Mendonça. São Paulo: Perspectiva, 2010.

  • BONFITTO, Matteo. Tecendo os sentidos: a dramaturgia como textura. Pitágoras 500, Campinas, v. 1, outubro 2011. p. 56-61. Disponível em: <http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit500/article/view/17>.

  • LIMA, Fábio F. A poética arquitetônica no espaço virtual. RES – Revista de Estética e Semiótica, Brasília, v. 2, jul/dez 2012. p. 27-39. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/index.php/esteticaesemiotica/article/view/11857>.

  • RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Neto. São Paulo: Editora. 34, 2009.

  • RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

  • ARTE 1 EM MOVIMENTO. Tudo Que Coube Numa VHS – Magiluth. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NyV9Hj_niRo>.

 



Thomaz Cannizza é ator e dramaturgo, bacharel e licenciado em Teatro pela UFMG. Seus trabalhos autorais recentes incluem direção e dramaturgia do espetáculo Fred & Laura, do qual também integra o elenco, e a cena curta Setembro, da qual também assina dramaturgia/codireção e que integrou a 6ª edição d’A-mostra.lab de Belo Horizonte em 2017.


Por Fred & Laura, recebeu indicações ao Prêmio Copasa Sinparc 2019 para “Melhor Texto Inédito”, “Melhor Ator em uma Comédia” e “Melhor Espetáculo de Comédia”, vencendo nas duas últimas categorias.


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