Por Grupo de teatro Morro Encena
Valendo-se da grande diversidade cultural existente no Aglomerado da Serra, Hérlen Romão e alguns amigos, em 1999, uniram-se para montar um grupo teatral de moradores da região, denominado grupo Paternon que, em 2004, se oficializou como ASSOCIAÇÃO CULTURAL CÊNCIO PATERNON, tendo como objetivo proporcionar o acesso a moradores de periferias a bens culturais, usando uma linguagem artístico-teatral e possibilitando sua fruição.
Em 2009, o grupo adotou o nome de “Grupo de teatro Morro Encena” como uma identidade do nosso local de origem. Muito além de registrar a importância dessa territorialidade no nosso teatro, vimos neste nome uma forma de reverenciar a nossa periferia, nosso público alvo.
O MORRO ENCENA é um grupo de teatro de rua (e/ou, espaços alternativos), feminino, sendo as atrizes residentes no Aglomerado da Serra, o maior de Belo Horizonte e de Minas Gerais. Atuamos com peças de teatros que, preferencialmente, reflitam sobre os Direitos Humanos e falem sobre a realidade social das periferias e sobre gênero.
“TEATRO FAVELA: um processo teatral composto por elementos do Teatro do Oprimido, Teatro Negro, Teatro Social e pela estética das favelas (arquitetura, cores, morros, alegria, superação, determinação etc.). Este teatro visa possibilitar a reflexão sobre as questões sociais existentes nestas regiões, na busca de possibilidades de emancipação, por empoderamento e por transformação, sem perder a compreensão da realidade das pessoas faveladas.”
ATRAVESSAMENTOS DO TEATRO DE FAVELA COMO MEIO DE MINIMIZAR AS INJUSTIÇAS SOCIAIS
Entendendo que o nosso lugar de ocupação seja dentro de uma comunidade negra e periférica e considerando a desigualdade social e geográfica existente em nosso país, surgem novas demandas que devem urgentemente serem tratadas com seriedade, para evitar a reprodução deste sistema opressor e excludente.
O Grupo Morro Encena, para além da atuação, vê no Teatro de Favela um elemento de extrema importância nas várias instâncias socioeconômicas e culturais. Ao longo dos 10 anos de experiências, percebemos que muitas das proposições teatrais que usamos, a partir dos nossos corpos, trejeitos, costumes e hábitos favelados, nos permitiram exponenciar tanto em cena, quanto na organização interna e na autonomia administrativa do Grupo. Assim, a nossa formação se dá, principalmente, a partir das vivências da favela e que voltam como produtos- apresentações e ações educativas - para esta favela.
A partir de pesquisas, estudos, capacitações, jogos, dinâmicas, exercícios e parcerias que fortalecem nossas potencialidades, reforçamos práticas pessoais e coletivas que contribuem para a constante construção de nossas identidades, enquanto grupo de Teatro de favela, bem como na propagação desses elementos nas várias ações comunitárias.
Considerando que essas práticas dependem de experiências, de vivências, da educação e da personalidade de cada sujeito, recortamos cinco habilidades e destacamos como elas agregam, fortalecem o grupo e fomentam novas parcerias, novas linguagens, outras vivências e experimentos, tanto individuais quanto coletivos. São elas:
*Empatia / Broderagem- capacidade que o indivíduo tem de se colocar no lugar do outro.
A territorialidade da favela, por si, já nos possibilita um olhar mais empático, considerando a proximidade de casas, corpos, vivências e afetações. Entender as inquietações dos nossos, saber expor as nossas inquietações, perceber as dificuldades (emocionais, financeiras, familiares), valorizar a individualidade e a diversidade, ser flexível, ter sensibilidade para identificar as dores e fraquezas das outras pessoas. Acreditamos que essas são algumas das práticas cotidianas no processo de humanização do teatro.
*Fazer o corre/ trampagem/Trabalho em Equipe - A partir de uma gestão democrática, na qual entendemos que toda função, ainda que individualizada, é igualmente importante e faz parte do todo, tivemos um considerável crescimento do grupo e das suas demandas, tanto no campo administrativo - com divisão das funções ( produção, finanças, comunicação e patrimônio) quanto no campo artístico (direção, atuação, produção e assistência). Esse novo “modus operandi”resultou numa participação mais efetiva de todos e deu mais autonomia e confiabilidade ao grupo.
*Desembolar/Criatividade - capacidade de encontrar soluções rápidas e originais.
O nosso maior desafio neste sentido é, literalmente, fazer muito com pouco. Isto, ao contrário de parecer um comodismo, é fazer o “seu melhor” com os recursos disponíveis. Acreditamos que o item principal para fomentar essa criatividade seja a confiança na equipe, na sua autonomia, na sua capacidade de lidar com improvisações, despertar a agilidade e o raciocínio.
*Barraco/Senso Crítico- Fazer barraco é a máxima manifestação do Senso Crítico, pois ele muitas vezes se dá a partir da negação de direitos ou privações. O teatro de favela compreende que existem variadas linguagens e leituras e que, enquanto sujeitos, precisamos questionar, ter ciência dos nossos direitos ee nos colocarmos em movimento contra tudo aquilo que está (im) posto, enfrentando todos os espaços e narrativas que nos invisibilizam.
*Aglomerar / Liderança - Aglomerar é muito mais que mover pessoas, é mover conhecimento. Dada a formação do grupo, composto por mulheres negras, periféricas, com vivências e formações diversificadas, acreditamos que uma liderança democrática que abarque as decisões de toda equipe, que prima por um trabalho colaborativo de forma eficaz, seja a que melhor nos compreenda e ative as nossas maiores potências individuais.
Essas, entre outras habilidades, deram ao grupo uma maior compreensão de si e o seu compromisso com a sua quebrada, seu território, o que possibilitou uma participação mais efetiva e positiva do Morro Encena nas várias questões que envolvem o Aglomerado.
O CORPO POLÍTICO NO TEATRO DE FAVELA
Os nossos corpos favelados no teatro, sobre o aspecto estético, na maioria das vezes e na maioria dos espaços, chegam antes de nós. É como se usássemos uma tarja de faveladas e esta fosse nossa primeira marca impressa. Isso, absolutamente não nos aflige, uma vez que somos e nos identificamos com tal. A grande questão é quando, pejorativamente, estes olhares subjugam, desdenham ou acham o nosso teatro pouco técnico, amador.
Sendo mulheres negras, faveladas, periféricas, obviamente, tudo isso será inerente ao nosso fazer teatral. Nele, incidirão nossos gestos, trejeitos, nossas vivências e, principalmente, nossos corpos realistas e cotidianos (altos, baixos, magros, gordos, senhoris, jovens), sempre respeitando a potência da história a ser contada por cada uma. Isto posto, quando nos interpelam sobre a falta de técnica no espetáculo, a pergunta que fica é: não há técnica, pois a estética é simples? Porque apesar de sermos profissionais nos falta legitimidade para o uso de conceitos acadêmicos? Ou seria em razão de nossos corpos negros e gordos não estarem dentro do padrão já concebido e aceitável para o teatro?
Por sermos corpos negros, o “público especializado” espera que limitemos nosso corpo às temáticas exclusivamente negras. Já o “público não especializado” espera que estes corpos (bandidos, empregados, escravos, mulheres hipersexualizadas, mulatas, etc) reforcem a estereotipação, ostensivamente reproduzida pela mídia. Quando não respondemos a estas “esperas”, há uma quebra de expectativas de ambos os públicos.
Isso porque, para além da potência de cada corpo, sua plasticidade e suas possibilidades, temos uma grande preocupação e cuidado com os atravessamentos contidos nestes corpos politizados e, por isto, entendemos que não nos cabe lugares predeterminados. Através dos nossos corpos, propomos reflexões sobre a nossa realidade social, sobre a segregação geográfica, racial, política, econômica, de gêneros e da ditadura da padronização da estética.
A NOSSA MUSICALIDADE
Gil Amâncio certa vez nos disse que é impossível dissociar corpo, voz, música e movimento do ator negro, da cena negra. E, apesar de a musicalização sempre estar presente na nossa criação, essa afirmação veio como legitimação do nosso processo.
Assim como a periferia, o Morro Encena tem em seu cerne uma grande identidade com a música e com a musicalidade. Esta, que está presente em nossas vidas mesmo antes do nascimento, ao estabelecer uma relação afetiva entre mãe e filho, ainda no útero, a “percussão vital” já está presente na nossa pulsação cardíaca. Na primeira infância, nossos corpos já dançam com nossas mães e avós nas lidas domésticas, quando aprendemos cantigas, passos de dançase estabelecemos nossa identidade negra musical. Somos um povo inerentemente musicalizado, nossa fala é cantante e rítmica, há ritmo em nosso andar, nossa voz é sonora.
Assim como na Capoeira, no Congado e em outras tantas manifestações populares, acreditamos que, no Teatro de Favela, o corpo, a voz e a música constituem um só corpo. Ao contrário de um acessório, a música para nós é parte integrante e fundamental de todo processo, ela vitaliza, harmoniza, movimenta e valoriza todo o processo, desde o aquecimento corporal até a sua plenitude na cena. Ela tem um porquê, um embelezamento, um aprendizado, um afeto. Nosso, maior desejo é tornar a música orgânica, viva.
Considerações
O nosso cerne de criação vem de uma pulsação artística favelada, negra, de primeira linha. Somos o único grupo de teatro catalogado num aglomerado com mais de 60 mil moradores e nos é muito preocupante que só exista um grupo que faz teatro e que vê nele uma ferramenta de luta e de desconstrução. A partir disto, começamos a pensar: o que falta? Quais os possíveis motivos de o teatro não fazer parte da identidade cultural da periferia?
Apesar destas respostas parecerem óbvias, dado o caráter elitista do teatro e a toda invisibilidade do povo favelado, em especial a mulher negra periférica, o Morro Encena busca, por meio do Teatro de Favela, maneiras de combater essa invisibilização quando oferece a estas mulheres condições de se verem, de ter referência e perceber que suas histórias podem ser contadas.
Temos no Teatro de Favela um importante meio de reflexão e de combate, sobretudo às desigualdades sociais, e precisamos urgente semeá-lo entre as nossas e os nossos para um fortalecimento mútuo.
REFERÊNCIAS
ROJO, Sara. Teatro e pulsão anárquica: Estudos teatrais no Brasil, Chile e Argentina. Belo Horizonte :Nandyala, 2011.
SILVA, Cidinha da. # Parem de nos matar. São Paulo: Pólen, 2019.
Morro Encena é um grupo teatral criado em 2009 no Aglomerado da Serra (BH). Explora em suas peças temas ligados aos direitos humanos, universo feminino e negritude.
Comments