O Trapézio-janela
Alexander Teixeira
Diego Balduino Vieira
Ludy Lins
Da janela pode-se ver muita coisa: o mundo lá fora, movimentos de pessoas anônimas, movimentos de uma cidade, de pássaros e nuvens... Das nuvens pode-se viajar criando figuras, contar carneirinhos e entrar no mundo onírico... E dos sonhos, pode-se alçar voos para além do tudo, para além do nada, ou para se despertar para um grande desejo: de realizar o que se sonhou. Creio que foram de sonhos que os caminhos se fizeram e se entrelaçaram nessa entrevista. Maria Clara, a curiosa e apaixonada pelo circo e os voos de um trapézio e Myriam Tavares, sonhadora de peripécias cabriolantes de um palhaço que acordava em uma janela... ¹
Conheçam mais, na entrevista a seguir, sobre IAM – o palhaço e a criação do Trapézio Janela por Myriam Tavares.²
Maria Clara: Eu acho interessante quando você, ao falar sobre sua experiência, diz que ‘comia a dança’, porque essa experiência do corpo é isso. Você tem uma experiência, ela vai transferindo para outros campos e, então, você tem um corpo ativo. Você teve essa possibilidade, interesse, curiosidade e determinação de procurar. Eu queria que você falasse um pouco sobre o que é o trapézio janela? Como você chegou no trapézio janela? Como você chegou naquele formato? Queria que você falasse um pouco dessa mistura entre a criação do “Iam” e a criação de um aparelho. Como se deu isso? Como foi se encaixando na “cachola da Miroca” para poder transformar e virar uma coisa artística.
Myriam Tavares: Começou assim até chegar no trapézio. Eu queria que fosse uma janela, mas, ao mesmo tempo, eu queria transformar essa janela numa esfera, para que eu pudesse desenvolver o trabalho lembrando da minha época de criança, que eu brincava nas barras, que eu fazia cambalhota e fazia movimentos acrobáticos. Eu queria resgatar essas memórias. Além disso, eu queria que o palhaço acordasse dentro de uma janela. A ideia principal era essa. Com isso, eu pensei: “bom, uma janela tem que ser quadrada… não tem como. Vai machucar o corpo”. Eu precisava de uma esfera! Então, estudando equipamentos da ginástica olímpica, em uma noite antes de dormir e tentando imaginar o espetáculo, veio a ideia dessa esfera como um ‘boom’. Não podia ser o trapézio volante, porque ele balançava muito e eu queria movimentos lentos, movimentos harmônicos. Eu queria ter movimento na lateral, em cima. Por isso eu falei que tinha que ser uma janela. Agora, como eu vou fazer essa janela para o corpo dentro dessa estrutura? Dentro desse retângulo? Tem que ser mais ou menos do meu tamanho. Aí eu coloquei 1,60m de altura e desenhei. Eu precisava de uma argola, onde eu pudesse colocar as alças na mão, porque eu também queria que o meu corpo desvinculasse da forma. Eu estava com ele todo desenhado, todo pronto. Aí pensei: “preciso confeccionar. Como vou confeccionar isso?” Na época, eu estava fazendo ginástica olímpica no Minas Tênis Clube - e eu fazia ginástica olímpica com crianças de 7 anos de idade. Era aquela marmanjona correndo atrás igual aos meninos para fazer primeiro os exercícios. Naquela oportunidade, eles me informaram que tinha um alemão que fazia os equipamentos de ginástica olímpica para o Minas Tênis. Consequentemente, eu o procurei. Ele se chamava senhor Schober. Conversando com ele, fui explicando o que eu queria e ele foi me mostrando o material. Com isso, escolhi o material e ele confeccionou. Soldou tudo direitinho – o material tinha que ficar bem lisinho. No desenvolver dos exercícios, eu vi que aquele vão ficava muito aberto e meu corpo podia cair. Daí eu coloquei uma corda no meio, para ficar mais seguro e ter condições de explorar mais movimentos acrobáticos. Isso possibilitou a divisão do espaço em dois: parte de cima e parte de baixo, permitindo assim maior recurso para criar mais evoluções. Eu usava movimentos em cima, embaixo, na lateral e fazia acrobacias nele; com o recurso da argola, eu poderia me distanciar dele. Então, foi assim que surgiu o trapézio janela. Quando me aposentei, em 2011, eu queria voltar para os palcos e a minha ideia era voltar fazendo trapézio janela, mas aí não deu porque tive um acidente, machuquei o tornozelo e a ideia morreu. Mas, no Festival de Inverno, eu usava o trapézio janela com as crianças pequenas, não usava movimentos acrobáticos nele, porque as crianças não tinham resistência física e era perigoso. Então, o que eu fazia eram os movimentos fotográficos, porque é difícil você subir com três crianças num trapézio; para elas conseguirem equilibrar juntas dentro do trapézio, era muito difícil. Mas, era bonito quando elas conseguiam harmonizar os movimentos juntos para realizar aquele número. Entravam três crianças. Elas conseguiam subir com dificuldades, equilibrar, ficar nele; aí o outro subia, e aí o próximo subia e depois realizavam o movimento fotográfico. Era o máximo que elas conseguiram fazer, porque era difícil controlar o trapézio e mantê-lo parado, estático. Para você conseguir evolução no trapézio janela, ele não pode mexer, ele tem que ficar estático. Não pode ter movimento, é o contrário do trapézio volante, que você precisa de movimento; no trapézio janela é o oposto, ele tem que ficar parado. Então, foi assim que surgiu a coreografia do ‘Iam’, que era o palhaço que acordava de um sonho. Tudo tinha que ser em câmera lenta e era dificílimo ter esse controle. Quando eu percebi que o controle no trapézio janela era encontrar o eixo de cada movimento integrado ao eixo do trapézio janela, eu passei a dominá-lo. Maria Clara: E a fixação dele é como, Myriam? É uma corda em cada ponto dele? Porque você falou que ele não pode girar, ele não pode mexer... Myriam Tavares O trapézio é retangular e, nas laterais, ele não tem quina, ou seja, ele é arredondado nas pontas. Nesse arredondado das laterais em cima, foi soldada uma argola de cada lado, eu passava a corda ali e subia para fixa-la no teto. Então, como eu apresentava na rua, tinha de montar dois cavaletes, igual a um gol (traves de futebol), e eu fixava o trapézio no meio para poder apresentar o espetáculo. Eu dancei o “Iam” na rua, dancei em praça pública, dancei em quadras. Onde podia montar essa estrutura eu apresentava. Inclusive, quando o prédio do T.U foi construído, uma das coisas que eu falei demais com engenheiro era que a sala de circo tinha que ter uma estrutura superior com algumas grades, que era para poder colocar os equipamentos, as cordas, os trapézios volantes, tudo que necessitava pendurar. Aí foi feita aquela estrutura que tem até hoje.
Carolina Matoso: Só uma dúvida que eu fiquei, quando você falou sobre o trapézio com as crianças e você falou que fizeram movimentos fotográficos. O que é movimento fotográfico? Myriam Tavares: Movimento fotográfico é quando você faz um movimento e congela (fotografa); depois você volta a fazer movimentos e congela. Então, a gente chama de movimento fotográfico, que é um movimento que você faz, estátua/foto, movimento, estátua/foto. No FIT (Festival Internacional de Teatro), os franceses vieram, não lembro mais qual grupo, eu tenho até a fita gravada, que eu gravei na época em VHS. Eles fizeram um espetáculo inteiro usando a linguagem fotográfica. O espetáculo era uma fotonovela em que os quadros, as cenas eram congeladas para serem registradas através de uma fotografia. Muito criativo. Marina Barros: Eu queria que você comentasse um pouco sobre a relação de autoria como, a do trapézio janela. Como e quando você cria um equipamento, como ele se difunde? O trapézio janela você falou que ele tá com Léo agora. Myriam Tavares: Essa sua pergunta é muito pertinente. A gente fazia as coisas Marina, e a gente era muito ingênua, porque na época não tinha ninguém para ensinar, porque, por exemplo, com o Transforma a gente não tinha dinheiro para contratar o iluminador, então a gente fazia tudo. A Nena colocava a gente para fazer tudo. Eu tenho uma noção muito boa de figurino, de cenário. Quando eu bolo alguma coisa, eu já tenho a noção do que eu quero de cenário, de figurino, que material vou usar. A nossa geração é uma geração que aprendeu a fazer de tudo um pouco. Tivemos que fazer divulgação, iluminação, cenário, figurino, não só idealizar, mas aprender a confeccionar, por a mão na massa. Então a gente não tinha verba para fazer um espetáculo, às vezes ganhava o diretor, o coreógrafo e os bailarinos eram cachês quando vendia bilheteria, entendeu? Por isso que a maioria dava aula. Para sobreviver tinha que dar aula. Eu fiz praticamente tudo no “Iam”, só tinha uma coreografia que era do Jairo Sette, que era um bailarino de São Paulo, que estava dando o curso no Transforma e eu o convidei, porque para não ficar tudo Myriam. Direção: Myriam, produção: Myriam, coreografia: Myriam...
Aí, o trapézio janela, por exemplo, eu não coloquei no programa idealização: Myriam. Quem idealizou o trapézio fui eu, a confecção foi do Schober, mas no programa, por incrível que pareça, está assim: “Trapézio: Mecânica Schober”. Eu nem lembrei de colocar criação e idealização Myriam Tavares, porque, lá no começo da entrevista, eu falei que a Myriam é igual Bombril, mil e uma utilidades. A gente não tinha noção, não tinha essa consciência. Eu era muito nova, eu estava com 19, 20 anos quando eu criei o Iam e foi o meu primeiro espetáculo solo que eu criei e produzi. Por exemplo, eu criei a Palhaceata (1, 2 e 3), que era um evento em comemoração ao dia internacional do palhaço. Era na Praça da Liberdade, quando a Feira Hippie ainda estava lá. Quando eu fiz esse evento, por exemplo, eu só registrei a Palhaceata porque, depois da terceira, o evento tomou uma dimensão tão grande… a televisão vinha com helicóptero filmando. Todos os grupos se apresentavam gratuitamente. Ninguém tinha cachê, não tinha lei de incentivo à cultura, eram empresas que contratavam os espetáculos. Então, eu tive na Palhaceata muito apoio da Universidade, do Sindicato dos Professores da UFMG. Eles iam lançar a revista da APUBH e ajudaram muito. Os grupos de teatro e de dança também ajudaram. Era assim que o evento acontecia. Mas, tomou uma proporção tão grande que eu pensei que deveria registrar. Foi meu primeiro registro: o evento ficou com a marca registrada para a gente conseguir a verba, para garantir o evento do dia internacional do palhaço. Então, foi a primeira vez que eu registrei alguma coisa. A gente só queria fazer atuar, a gente não tinha essa preocupação. Nesse sentido, eu realmente nunca registrei o trapézio janela, até poderia registrar, mas passou e não precisou. A Palhaceata até precisou, porque senão, as pessoas começariam a usar o nome e desfigurar o evento. E é caro! Gastei uma grana tremenda para registrar.
Maria Clara: Ôh Myrian você me deu uma ideia. Você disse que o Iam era um sonho e que ele acorda de um sono. A gente pode sonhar né? Quem sabe a gente arruma as pessoas para fazer e a gente não faz esse número? Eu tô cheia de projeto com você, não adianta fugir não. Você falou de sonho e eu tô sonhando mesmo. Eu acho que caberia a gente pegar algumas pessoas que estão muito interessadas em pesquisar, você dirige e a gente VUP! Põe o trapézio janela do sonho da Miroca para o mundo. Myriam Tavares: Olha, vai ser um prazer! Quando eu machuquei o tornozelo e vi que eu não podia mais trabalhar (foram 20 dias depois de aposentada, virei o tornozelo e detonei o tornozelo todo) eu dei todo meu material para o Léo Ladeira. Então, os trapézios estão com o Léo. É só a gente entrar em contato com ele para pedir emprestado. Vai ser um prazer passar toda bagagem que eu tenho. Quem sabe a gente não monta um trabalho com os três trapézios juntos? Três pessoas trabalhando? Agora, é difícil, é árduo. Tem que pegar para valer, não é fácil não! Mas, se todo mundo estiver disponível e disposto a trabalhar com afinco, dá certo. Dá para montar um número muito lúdico, muito bonito, muito harmônico, trabalhando várias linguagens nele. Vocês vão adorar. Mas tem que ter muita dedicação e resistência física. Mas é legal! Tem que trabalhar para ver se dá certo ou não. Se eu tiver com saúde até lá, 'vamos embora’.
¹ Texto introdutório feito por Maria Clara Lemos.
² Este é um texto que ilustra uma entrevista, realizada por meio da plataforma Zoom, com a artista e professora Myriam Tavares. A iniciativa e realização da entrevista é da equipe do Grupo de Estudos Circenses (GEC/TU SIEX 204207), coordenado pela professora Maria Clara e composto pelas estagiárias Marina Barros e Carolina Matoso. A transcrição da entrevista e a elaboração textual a partir dela contaram com o trabalho dos colaboradores da equipe do Blog MISTURA. Todo o material foi disponibilizado previamente para a artista entrevistada, que aprovou o texto aqui publicado.
Myriam Tavares Pereira é formada em Dança e Letras. Coordenou o Curso de Dança Infantil e ministrou aulas por 10 anos na Escola de Dança CORPO. Fez Preparação Corporal e coreografias para os espetáculos de vários Grupos Profissionais de Teatro. Criou, dirigiu, produziu e coreografou o Espetáculo Circense " IAM- O PALHAÇO " onde idealizou e desenvolveu o Trapézio Janela. Criou e produziu AS PALHACEATAS - I,II, e III ( Comemoração do dia Internacional do Palhaço) e as "INVASÕES DE PERNAS NAS PAU". Participou como professora por 12 anos no Festival de Inverno da UFMG com os cursos de DANÇA para adultos e das OFICINAS DE CIRCO, TEATRO E DANCA para crianças. Participou das Jornadas Culturais da UFMG e vários eventos da universidade . Atualmente é professora aposentada do Teatro Universitário da UFMG onde criou a disciplina de Técnica Circense I e II para o Curso de Formação de atores, ministrou aulas de Dança , Preparação e Consciência Corporal e foi pioneira em divulgar a linguagem circense dentro da UFMG e em Belo Horizonte. Ministrou aulas de Técnica Circense no Coltec da UFMG na área de Educação Artística.
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