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UMA ESCRITA DO CORPO

Atualizado: 12 de jun. de 2020



No desejo de promover a reflexão sobre a necessidade de ações crítico-propositivas no campo das Artes do Corpo sobre a performatividade de gênero enquanto garantia de visibilidade de mulheres-artistas e na produção de conhecimento artístico-científico, o projeto “Uma escrita do corpo” tem como objetivo uma escrita da experiência dançante diante da impossibilidade do encontro físico corporal entre duas artistas. De forma análoga ao que surge no encontro com o público no ato de dançar, as artistas se propõem a manter uma troca de informações, de desejos, de estudos e de criações, a fim de possibilitar a construção de um saber conjunto sobre temas que permeiam suas experiências em Dança e no contexto ao qual se encontram.


Seguindo a lógica da carta como meio de comunicação entre duas pessoas em lugares distantes (uma vez que cartas já foram trocadas em diversos momentos da história entre pensadores e artistas renomados), as artistas deste projeto articulam sua prática de Dança com o texto da carta, pensando nas escritas de si como ponto de partida para a comunicação da experiência dos corpos envolvidos nesse desejo de encontro.

Em uma tentativa de colocar os corpos em diálogo mesmo distantes, buscando elaborar um saber sobre Dança por meio da palavra escrita, as cartas virtuais são direcionadas a um território virtual, em um blog, em formato de posts, onde poderão ser lidas por outras pessoas. A escrita em articulação partilha interesses semelhantes sobre o corpo e movimento dançado, onde o gênero, a sexualidade e a construção de identidade são questionados pela vivência de cada corpo, o que leva as artistas à investigação de si por meio das Artes e especificamente da Dança é a busca de uma transgressão que possibilite o saber arte-vida intrínseco em suas vivências identitárias.


Neste momento de distanciamento social o que nos resta senão pensar naquilo que somos?

Seria este um momento de introspecção para a humanidade questionar suas maneiras de viver?

Estaríamos nós realizando um trabalho sobre si mesmas a fim de criar outra humanidade?



Esses questionamentos trazem a tona um caminho de reflexão possível quando um corpo se coloca a pensar e investigar a si mesmo.


Pautado pelos nossos questionamentos e discussões sobre gênero em diálogo com a Teoria Queer[1], o projeto será um meio para a articulação desses assuntos com a Dança enquanto campo de conhecimento e expressão artística, produzindo novas abordagens para os temas em questão.


Aspectos e desejos para uma possível justificativa do encontro:

1. O projeto se estabelece como ação afirmativa, no que tange questões de performatividade de gênero e suas transversalidades;

2. Somos artistas da cidade de Belo Horizonte que vemos a importância desse discurso se estabelecer no ambiente acadêmico e em específico nas Artes como construção de saber e experiência.

Dança, gênero e sexualidade: cartas de dança-corpo


O sistema sexo / gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados. A (hetero)sexualidade, longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se reinstruir através de operações constantes de repetição e recitação dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos naturais. (Manifesto contrassexual, Paul B. Preciado, p.26, 2017)


A subjetividade constituída como um movimento configurado por uma relação social [de receber e responder] nos provoca, como artistas da Dança, uma resposta na perspectiva de sujeitos que não desejam se encaixar à padronizações sociais e estéticas, na busca de desencaixar esses padrões como uma responsabilidade ética no que tange ao que se reconhece como humanidade e como consequência aos padrões de dança, de corpo, de discurso e de criação de si. As correspondências se estabelecem como resposta em movimento dançado.


As cartas de dança são escritas como produção de conhecimento sobre gênero e sexualidade e enquanto performatividade do corpo, que dança, que materializa as suas respostas sociais. A correspondência das cartas de dança enquanto discurso do desejo de encontro e afeto a partir da mensagem escrita do corpo, das mãos, do toque e do gesto se estabelece como senso queer que marca um campo de conexão entre alteridade e afetos.

A afirmação da diferença como aliança de liberdade dos nossos corpos em isolamento, mesmo que apenas livres no lirismo da escrita e na performatividade de gênero, se manifesta através da narrativa em correspondência, que move no corpo uma dança sutil, sensível e livre.


As “cartas de dança” se estabelecem como uma escrita a partir do desejo do encontro de cada uma, ao receber e ao responder os escritos uma da outra, como lirismo da dança individual que deseja o encontro, a presença e o corpo uma da outra como composição artística.

Uma escrita do corpo, uma escrita de corpos que se atravessam em caracteres, palavras, desejos e dança.


O projeto “Uma escrita do corpo” tem como ação principal a escrita, a organização e a manutenção de um blog virtual, em que as artistas realizam publicações da troca de correspondência virtual por meio de endereço eletrônico pessoal. Como produção artística, as “cartas de dança” são publicadas em posts no território virtual, contendo o diálogo e criação de uma escrita unificada e autoral das mulheres-artistas.

 

Correspondência entre as duas artistas


Lua gostaria de lhe escrever tantas coisas!


Hoje ou ontem o dia não foi muito produtivo em relação ao que eu queria produzir. Quando, então, abri mão desta vontade, eu felizmente consegui fluir pelos sentimentos que me afetavam. São muitos, às vezes me perco e sempre me encontro na triste solitude, que de triste não tem nada. O desejo às vezes se escapa de mim como um ladrão da policia, ele leva o meu animo nas mãos e me deixa perplexa em cacos soltos ao vento.  As coisas estão começando a faltar isso tem ajudado o bandido. Tenho pensado muito em uma micropolitica do ser, onde me vejo questionando ações simples da vida. Assim me veio hoje o pensamento de produzir experiência, no campo sensorial ao qual me apeguei junto aos estudos em dança. Sendo assim permeio o vazio de um eu que não existe, uma forma de lingua que não se possa entender mas sentir, como diz em sua ultima carta, sinto um corpo desabitado e vou povoando de coisas sensiveis, sentidas por este corpo vazio ao ler suas palavras. Dançei na chuva, ou melhor com a chuva!  Essa escrita fluida me leva ao ser maior que tambem não pede passagem, se manifesta nas sutilezas da natureza ou de onde o vemos sem muita categorização. Dançar o caos, o vazio, a tristeza e os fantasmas é na verdade viver ao meu modo. Nos encontramos aqui? A escrita como uma forma de manifestação da pessoa, ou ideia, que nos tornamos com o passar dos dias, ela é o ponto de encontro que nossos corpos anseiam e assim se tornam extensão movimentos. Ir e vir! Ir ao seu encontro e vir em busca de mim, este tem sido outro pensamento âncora dessa escrita. Quero mesmo lhe escrever tantas coisas! Hoje ainda chove, o café perdeu a graça espantosamente. Esperei por este momento de lhe escrever como se ele fosse uma torta de biscoito com chocolate, em tempos sombrios essa torta faz milagre. Como dançar em conjunto estando separadas? como povoar o mundo vazio em si mesmo? como progredir em formas aritméticas quando se tem apenas o desejo de saber? como responder aquilo que toca seu âmago? Não sei onde tantas perguntas se alojam em meu corpo, estranho corpo. Há algo nele para alem de mim, que não sei como agir. Na dança nem sempre me permitem questionar o corpo que dança, pois as vezes ele esta tão formatado que não tem espaço pra mim. É apenas um corpo, me dizem como se fosse a resposta secular. Não sei de onde tiram a ideia de corpo que coloca em movimento suas questões, mas com certeza ela não me cabe. Eles são os técnicos e fazedores da arte! Espero que essa nossa ideia possa mudar ao menos nosso mundo! Vou desenvolver minhas experiencias para lhe escrever, acho que elas podem ser sugeridas como respostas para o mundo que as gerou. Amigo, perdoe me por tantas questões. Não é todo dia que alguém aceita conversar comigo. Não sou pobre coitada, estou mais próxima de ser uma bruxa enjaulada no corpo do outro, do outro porque não é meu, o meu corpo é sem duvida uma festa onde o êxtase é fundamental. Sabe tenho pensado muito sobre minha atuação em dança, mesmo no campo teórico onde poderia navegar com essas ideias. Vamos afirmar outras possibilidades! Quando alguém se cala é considerado cúmplice de um crime, não seriamos cúmplices da regulação do gênero ao permitir sua atividade dentro da dança de forma inquestionável? Creio que a dança se eximiu deste posicionamento permitindo em sua maioria a visibilidade do corpo cisgênero. Embora ela não seja toda igual, a maior parte dos praticantes que conheço não percebem que a pratica esta pautada no gênero. Creio que estas questões vão surgir em maior publico de agora em diante, creio que irão nos retornar como problemas e assim poderemos criar alternativas. Espero estar errado. São tantas coisas que quero lhe escrever, maior ainda e minha vontade de ler o que me escreve. Não se preocupe em me responder, gosto dessas perguntas. Podemos falar de outras coisas. Obrigada por me deixar existir. Abraços.

 

Carta resposta: Querida,

Recebo a sua carta como quem deseja uma taça de vinho. Mas nesses tempos de guerra invisível degustar um vinho se tornou uma travessia entre territórios inimigos. Por aqui não faltam coisas, falta presença. Danço o caos do vazio, sinto cada vez que a morte me convida a uma improvisação e que ela conduz o acontecimento. Por mais absurdo que seja, não tenho medo da morte. Dançar a morte manifesta o que tenho de mais humano. Sinto como sísifo, carregando a sua pedra morro acima todos os dias. E repito esse passo de dança, e repito, e repito. Como já disse Manoel de Barros: “Repetir, repetir, repetir... Repetir é um dom do estilo.” Meu estilo é uma dança do delírio. Delirar... ah sim! Deliro nessas palavras como quem delira ao dar piruetas em diagonal! Sou dançarino de mim mesmo, meu lirismo dança nessas frases que dedico a você. Sim, dedico essa dança da morte a tu, Dianna. Desejo que receba essa carta de dança como quem degusta uma torta de biscoito de chocolate. Sinta que danço com você como a respiração e as batidas do coração que estão presentes em seu agora. Como um pequeno prazer da vida em tempos de distanciamento. Todos esses dias quando acordo sempre me pergunto: o que vamos pensar sobre isso tudo no futuro? Já não sei mais o que é futuro. Na verdade, tenho a sensação de que AGORA compreendo o que é medir o tempo. Tempo de acordar, comer, falar, escutar, dançar... Ah sim, a dança! Dancemos nessas palavras uma sagração ao outono! Nasci no outono e este com certeza é o que mais sinto em meu corpo. Sinto que tudo faz sentido no outono. Como ciclo vital, sinto o tempo do agora pulsando em cada célula do meu corpo como que mapeando este território único que posso percorrer. Tenho vontade de traçar cartografias de mim mesma. Reteritorializar meu corpo, minha dança. Fico pensando que talvez, se isso tudo passar, vamos reterritorializar nossas danças para além da Avenida do Contorno. Sim, essa cidade dá piruetas no mesmo lugar fazem muitos anos. Precisamos decolonizar nossos territórios, nossos corpos. Temos que nos apropriar de nossas estéticas de margem. Quero traçar cartografias intelectuais da minha dança. Quero manifestar no corpo minhas próprias escrituras. Quero enviar cartas à quem me enxerga. Quero sentir gozar com minhas próprias mãos. Sinto que ao te escrever gozo de mim. Nossas cartas me provocam. Também não desejo respostas. As perguntas é que me movem. Agradeço por dançar junto. Agradeço pela janela aberta. Lua no outono. Abraço!

 

[1] "Desfazendo o gênero: a teoria queer de Judith Butler " 20 abr. 2018, http://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/138143. Acessado em 30 abr 2020.

 

Referenciais presentes no percurso do projeto

  • PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. Tradução: Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2017.

  • SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução e notas: Guacira Lopes Louro.-1. ed.; 4. reimp. - Belo horizonte: Autêntica Editora, 2017.

  • HANNA, Judith Lynne. Dança, sexo e gênero: signos de identidade, dominação, desafio e desejo. Tradução: Mauro Gama. Rio de Janeiro: Rocco, 199.

 

Licencianda em Dança pela UFMG (2014-2020), Luana Coelho Gomes é artista circense, produtora, dançarina contemporânea e iluminadora cênica na Nomas Trupe. É professora em técnicas de manipulação de objetos na investigação de narrativas malabarísticas nas estéticas clássica e contemporânea e professora em técnicas contemporâneas de Dança com recorte na investigação do estudos do movimento dançado e da consciência corporal. www.nomastrupe.wordpress.com


Dianna Denner é licencianda em Dança na UFMG, dançarina, performer e iluminadora. Atua na investigação do corpo na cena, com foco no gênero e sexualidade dentro da dança. diannadenner.wixsite.com/dennermoises


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