Por Jefferson Almeida - Definitiva Cia de Teatro
Cá estamos, nesse espaço que concretiza a realidade – apesar da sua natureza virtual (sinal dos tempos!) – e que busca uma experiência de registrar trajetórias e aspectos de um campo da atividade humana que historicamente se inscreve no mundo a partir da experiência: o das artes. Neste caso específico: as artes cênicas. Dizendo ainda melhor: o teatro – esse senhor que, pelo menos aqui no ocidente, carrega mais de dois milênios de história, inúmeras caras e modos de se manter ativo, sobrevivendo a guerras, pandemias e arbitrariedades de poder.
Aqui, somos obrigados a encarar o teatro pela única via possível além da experiência fenomenológica de estar diante de um espetáculo: a do registro. Este, que também é uma maneira de discutir estética, torna possível fazer perguntas sobre uma experiência do real que, embora concreta, se define pela efemeridade e pela sua autodestruição, à medida que sua existência se consome – eis o paradoxo do teatro. Um segundo modo de registro – também falho, pelo seu caráter pessoal, embora se pretenda técnico – é a crítica. E, por fim, aparece a memória. Se a crítica recebeu, ao longo do tempo, a chancela de legitimar determinado acontecimento teatral, foi menos pelas análises perpetradas por este ou aquele crítico e mais pelo seu viés historiográfico. Espaços como este balizam a memória, por meio do que se registra nesses textos, como potência historiográfica. Neste caso especificamente, deixará registrada a trajetória de uma companhia de teatro, do seu nascedouro até o momento em que se consegue – cotejando seus trabalhos – distinguir traços de identidade e de expressão estética.
Parece “chover no molhado” dizer que o teatro é uma atividade que reclama uma experiência específica: a do encontro. A trajetória de uma companhia teatral é marcada por encontros.
A coisa se dá em uma prática de duplo endereçamento: ao passo que um dos objetivos do trabalho de uma companhia é o de preparar espetáculos e, assim, encontrar-se com o público, existe um segundo objetivo que abarca a companhia internamente: a formação técnica dos seus membros a partir dos seus treinamentos e do desenvolvimento da sua linguagem. Tendo dito isto, vale dizer uma obviedade: esta companhia nasceu de um encontro.
Era 2008 quando eu me encontrei com Tamires Nascimento. Ela, uma atriz que eu não conhecia; eu, um diretor que ela não conhecia. Nós dois, produtores que não existiam. Desse encontro e do desejo de montar uma peça, inventamo-nos produtores e inventamos um coletivo com alunos dos variados cursos da Escola de Teatro da UNIRIO. A Cia. Provisória foi o nosso ponto de partida e foi inicialmente pensada como um espaço aberto dentro da universidade, onde imperasse o caráter de provisoriedade dos processos e das funções. O desejo inicial era, então, o de estabelecer diálogos constantes, de ser um elenco aberto, ter diretores e procedimentos diversos. Ser, em suma, um espaço onde os alunos pudessem se experimentar na prática, sem o compromisso acadêmico exigido pelas Práticas de Montagem (PMT) - sendo, contudo, alimentado teórica e praticamente pelo material adquirido nas aulas e projetos oficiais.
Escolhido o primeiro material de trabalho – a peça musical Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra –, o grupo passou a ter encontros regulares e, durante seis meses, se dedicou a exercícios que visavam ao desenvolvimento das habilidades dos atores individual e coletivamente, estudaram analiticamente o texto em suas divisões técnicas e discussões temáticas e, num segundo momento, levantaram o espetáculo propriamente dito, no que se refere a desenho de marcas, espacialização etc. Em paralelo, o grupo desenvolveu métodos de produção independentes para, a grosso modo, gerar dinheiro para a confecção de cenário, figurinos, divulgação.
O treinamento constante e o profundo estudo da dramaturgia e de materiais teóricos de apoio começaram a engendrar no grupo traços de identidade – ainda não uma identidade estética, mas um vocabulário de verbetes e movimentos, algo que fazia daquele conjunto de indivíduos (que, até então, usava a intuição como método) algo sólido. Cia. Provisória começou, então, a indicar aquele grupo de indivíduos com aquele vocabulário e que tinha no teatro musical – estilo da primeira peça do grupo – seu material de interesse.
Internamente, a questão não estava tão bem resolvida assim e apresentava debates de todas as ordens como, por exemplo, de nomenclatura: o que significa ser uma companhia de teatro? Ou o que significa essa provisoriedade que o nome indica diante da resolução de abrir mão deste caráter que está na ideia-gênesis? Durante os dois anos de existência do Calabar, nós pudemos experimentar muitas coisas, sobretudo a dúvida: a dúvida sobre a continuidade, sobre o desejo da convivência, da intimidade que essa espécie de casamento nos obriga. Resolvemos parar.
Mas, como diz o título daquele filme da Christiane Jatahy, é a falta que nos move. Resolvemos voltar, estabelecendo objetivos mais claros, dos pontos de vista da produção e da investigação. Resolvemos encarar a coisa desta maneira: somos (ou desejamos ser) uma companhia, devemos (ou desejamos), então, investigar os modos de estabelecer uma linguagem. Intuitivamente, começamos essa busca.
Calabar supriu o nosso desejo de experimentar o teatro dito “musical”. O que viesse, naquele momento, precisava partir disso para criar um caminho no qual fosse possível começar a pensar numa identidade.
Como se constitui uma identidade na prática teatral?
A essa pergunta eu respondo dizendo que, para isso, é preciso lançar mão de procedimentos (não só eficientes do ponto de vista da comunicação, mas) que possam ser desdobrados e reconhecidos em diversas experiências, aprofundando-os, transformando-os no modo como este grupo escreve suas experiências estéticas e as inscreve num suporte. A esse conjunto de procedimentos que identificam grupos, costumamos, em teatro, chamar de linguagem.
Ou seja, o que viesse a partir do Calabar precisaria, necessariamente, apontar para o desenvolvimento de uma linguagem. E isso, de fato, nos tomou tempo e estudo. Deus e o diabo na terra do sol, montagem realizada a partir do roteiro do filme homônimo de Glauber Rocha, seria a primeira incursão consciente nesse sentido. Sabendo que a música era um desejo comum, começamos, então, a refletir sobre a presença desse elemento, tensionando pensamentos que compõem o senso comum quando se trata de aliar música ao teatro (aliados, aliás, desde sempre). Para o programa de estreia do Deus e o diabo... escrevi um texto chamado "O difícil é ser total" (roubando uma frase do Hélio Oiticica pro título) onde tentava responder questões como: "Deus e o diabo... é um musical?", "O que é isso, então?" Era o início do nosso caminho em busca de uma linguagem. Caminho esse que estamos trilhando ainda e no qual caminharemos por muito tempo. Afinal, a cada resposta que temos, novas possibilidades de perguntas aparecem.
É nesse momento o encontro com Renato Frazão, figura fundamental não só para a elaboração de uma música de alta qualidade como para o desenvolvimento de um pensamento e, por conseguinte, uma prática que conjuga cena e música. A partir de 2011, Renato passa a integrar a Definitiva Cia. de Teatro e a pensar e provocar tensões entre esses limites.
Deus e o diabo… nos tirou da UNIRIO e nos levou ao dito “mercado”. Transformou a Cia. Provisória em Definitiva Cia. de Teatro, nos levou a 4 estados, nos deu 7 prêmios nacionais e outras 23 indicações. Deus e o diabo… nos responsabilizou pelo caminho que estávamos construindo.
Em 2017, estreamos nosso terceiro espetáculo a partir do romance de Clarice Lispector. Para A hora da estrela, chegamos à conclusão – imbuídos do espírito metalinguístico do romance e, consequentemente, da peça – que a música precisava ser uma camada ainda mais aparente, mais que um recurso, uma ferramenta de atuação. Os atores aprenderam a tocar instrumentos e a executar a música em sua plenitude. E isso mudou sobremaneira os estados de presença e de atenção.
Deus e o diabo na terra do sol e A hora da estrela formam um díptico fundamental na pesquisa da companhia, no qual se estabelecem os pilares identitários da mesma. É, sobretudo, aí que começa a ser elaborada a ideia que vai organizar os procedimentos de nossos processos criativos: a cena-música.
O som e a fúria – Um estudo sobre o trágico, quarto espetáculo da companhia, que estreou em janeiro de 2020 no Oi Futuro Flamengo, com dramaturgia de Rosyane Trotta, enquanto ideia, nasce do meu reencontro com A origem da tragédia. Livro-ensaio em que Nistzsche revisita o nascimento do teatro ocidental para, em última instância, fazer um elogio ao compositor Richard Wagner, cuja obra, segundo o filósofo, conjuga numa relação poderosa os espíritos dionisíaco e apolíneo, caos e organização, forma e conteúdo, sem que essas coisas, contudo, sejam matérias estanques: elas existem em interdependência, em convívio, não no afastamento dos polos, mas na simbiose dos centros.
Se A hora da estrela nos trouxe a música em sua plenitude, O som e a fúria… precisava fazer surgir uma coisa de dentro da outra: de dentro da cena, música e, de dentro desta, cena… A este eterno parto de um e de outro é que chamamos de cena-música. Um lugar que talvez tenha mais a ver com criação do que com o que se visualiza no fim, e que é o nosso assunto hoje.
Jefferson Almeida é bacharel em Teoria do Teatro pela Unirio, diretor e ator de teatro. Está à frente da Definitiva Cia. de Teatro, desde a sua fundação.
A Definitiva Cia. de Teatro foi fundada em 2008, com o objetivo de pesquisar a relação da música com a cena. Desde então, vem buscando borrar os limites de uma e de outra, fazendo-as conviver de forma indissolúvel no que a Cia. chama, agora, de cena-música. É a busca desse lugar de encontro, de mistura e esmaecimento de fronteiras, que rege o trabalho da Definitiva.
A Definitiva possui cinco projetos teatrais em seu currículo, sendo quatro espetáculos - Calabar, o elogio da traição (2008), Deus e o diabo na terra do sol (2011), A hora da estrela (2017), O som e a fúria - um estudo sobre o trágico (2020) - e uma versão compacta e revisitada do espetáculo de estreia – Calabar em concerto (2018) - em comemoração dos 10 anos de trabalho da Cia. Além destes realizou o projeto audiovisual Cartas de arquivo (2018) em parceria com o Arquivo Nacional como parte das comemorações de seus 180 anos.
Comments