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ISSO NÃO É TEATRO

Atualizado: 4 de jul. de 2020

Tradução Rogério Lopes



Foi na tentativa de trazer mais uma contribuição para o debate sobre o teatro em tempos de pandemia que resolvi traduzir esta carta aberta do Conselho Teatral do Quebec no Canadá. Isso porque, me chamou muita atenção o fato de que, mesmo o Quebec sendo uma comunidade acostumada a lidar com a tecnologia digital no universo das artes, eles ressaltam a necessidade de levarmos em conta as especificidades de cada tipo de manifestação artística e de reafirmarmos as características próprias do teatro (assim como eu já havia apontado no artigo "Teatro - O que será?" que publiquei no mês passado também aqui no Mistura).


A versão original de Ceci n'est pas du théâtre pode ser encontrada no site do Conselho de Teatro do Quebec, que gentilmente nos autorizou a publicar sua tradução aqui no Mistura. Por fim, gostaria de agradecer à Amanda Bruno [1], professora de francês e tradutora, que me auxiliou na preparação deste texto.


 

Isso não é teatro

Carta aberta dos membros do Conselho de Teatro do Quebec no Canadá.

Já faz alguns anos que as ações do Conselho das Artes do Canadá (CAC) estão fortemente voltadas para a tecnologia digital. Ainda que o meio teatral reconheça o valor inegável de suas ferramentas no sentido de facilitar a produção e a difusão do teatro, no que diz respeito à criação, tudo se passa de maneira diferente.


Encorajado pela nova onda de iniciativas artísticas que apareceram nas telas dos equipamentos eletrônicos desde o início da crise (do novo coronavírus), um discurso otimista, ainda que infelizmente tendencioso, avança no sentido de que a sobrevivência das artes passará por uma migração em direção à web. É verdade que os espaços virtuais de comunicação nos reconfortam. Queremos crer que eles substituem adequadamente o real, senão como visualizar os meses e talvez os anos por vir? Contudo, para melhor participarmos da mutação atual do mundo, é necessário, primeiro, sermos honestos: a natureza direta das artes da presença é, em geral, incompatível com a tecnologia digital.


É um pouco surpreendente como, diante da perspectiva de as artes da presença continuarem sendo essa terra de ninguém, tantas vozes se elevem para brandir a tábua de salvação da tecnologia digital. Liza Frulla e Louise Beaudoin, duas grandes damas da cultura, afirmaram em entrevista para a Rádio-Canadá que a área cultural teria que se reinventar por meio da tecnologia digital. Numa postagem em uma das seções do site La Presse, publicada em 19 de abril, Simon Brault, diretor do Conselho das Artes do Canadá (CAC), nos convida “a vislumbrar o desenrolar dos fatos com uma vontade real de experimentar e de inovar” e à “adoção rápida e generalizada das ferramentas da tecnologia digital”. Ele reiterou sua posição esta semana, no mesmo site La Presse, insistindo sobre o fato “de que é necessário que a reflexão sobre a tecnologia digital seja favorecida (...).” Além disso, o CAC se associou à Rádio-Canadá para oferecer o programa “Conexão criação”, com o objetivo de financiar a criação ou a adaptação de uma obra de tecnologia digital.


O problema não está na proposição de uma medida como esta, nem na fé expressa em relação aos artistas. O problema está no caráter monolítico do discurso que ouvimos. Nós estamos perplexos diante dessa propensão a crer que a prática de uma forma de arte venha a ser a prática de todas as artes e que, então, seja suficiente que os artistas de todas as disciplinas integrem a web para continuarem a existir. Cada setor exige um tipo de conhecimento que lhe é peculiar. Um dançarino não é um artista visual, que, por sua vez, não é um cineasta. Certos artistas escolhem adotar dentro de suas práticas algumas ferramentas digitais com entusiasmo sincero. Isso é ótimo. Toda forma de fazer arte deve permanecer radicalmente livre. É justamente esta liberdade que reivindicamos hoje: manter-nos fiéis às artes da presença. Não que elas sejam melhores que as artes digitais, mas porque sua natureza é outra e deve ser preservada.


O teatro é a arte do estar junto. Sem o encontro ao vivo com o público, o teatro não é. Sem essa deliciosa e perigosa consciência da possibilidade de falhar diante de outro ser humano, o teatro não é. Sem a mística consciência de partilhar um momento único, imediatamente fugidio, o teatro não é. Sua qualidade existencial repousa sobre sua efemeridade.

Aquilo que emerge entre os corpos que se encontram é o teatro. São as ideias e as sensações que circulam entre os espíritos ali presentes que são o teatro. Nós construímos universos multiformes, integramos novas tecnologias, nos unimos por vezes a outras disciplinas, mas nada disso afeta a natureza profunda das artes da presença, que respondem a uma necessidade pré-histórica da humanidade de estar entre os seus, de se perceber na presença catártica de seus semelhantes.


Nestes tempos inéditos, a tecnologia digital é um emplasto que apreciamos por aquilo que ela é: um meio de manter o contato com o público e oferecer alguma alternativa à sua expectativa por espetáculos. Algumas iniciativas louváveis e promissoras durarão. Outras são criadas para serem temporárias, para nos manter protegidos do vento até que o mau tempo passe, o que corre o risco de demorar.


Sem conhecer tudo sobre os cenários de desconfinamento, já sabemos que as medidas de distanciamento serão mantidas. Será necessário um longo tempo antes de nos encontrarmos dentro de uma sala de espetáculo. A prioridade no meio teatral é, sem dúvida, ser solidário, respeitar as recomendações de saúde pública e esperar o tempo que for preciso antes de reabrir suas portas com toda segurança.


Mal estamos no início da crise. Então, é impressionante ler Simon Brault se gabando do fato de que “(...) o choque brutal não provocou de toda maneira o naufrágio temido. Em poucos dias, uma centena de artistas difundiram suas criações a partir de seus estúdios caseiros”. Como é possível afirmar que já evitamos a catástrofe? E esse maremoto digital é verdadeiramente a prova que os artistas encontraram na web um meio paliativo para o fechamento dos lugares de difusão de suas obras? Uma iniciativa espontânea nascida em estado de choque não garante a vontade e nem a capacidade de um artista de seguir dentro desta via - via quase sistematicamente sem remuneração, é preciso que se diga. De seus estúdios caseiros, numa solidão contrária à sua prática, numerosos artistas temem verdadeiramente que o teatro, ele próprio, seja levado pela pandemia após milhares de anos de resistência. Muitos sentem que seu dever, neste momento, é escutar com cuidado e não sucumbir a uma resposta automática de produção, aprendendo rapidamente os princípios da tecnologia digital. Outros terão finalmente a oportunidade de aproveitar esse tempo de gestação, de pesquisa e de criação constantemente negligenciado. Talvez, alguns conseguirão, com a ajuda do isolamento, perceber coisas profundas que, de outro modo, estariam escondidas e as transformarão em criações que se darão, um dia, em cena.


O teatro sobreviverá a esta crise. Ele se manterá em vigília. Ele se esforçará para enfrentar o medo do vazio. Ele será paciente, mas, se necessário, ele imaginará maneiras inesperadas de nos unir para além de nossas telas. Ele poderá ocorrer diante de um público de doze pessoas, se dispersar dentro de um estádio de futebol, distribuirá roupas de astronautas para o público sedento de proximidade. Pouco importa, desde que estejamos reunidos.

E, então, quando o momento certo chegar, o teatro abrirá suas portas enormes e irá retomar seu papel de onde ele o deixou. Nós não queremos uma saída da crise sob o signo da tecnologia digital. É na busca pelo outro, no contato direto, que nós retomaremos as forças que nos têm faltado.


Esta carta tem assinatura conjunta dos membros da administração do Conselho Quebequense de Teatro.

Carta publicada em 07 de maio de 2020

 

Notas

 



Rogério Lopes é diretor, ator e professor do Teatro Universitário e do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG.




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