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MEU LIMÃO, MEU LIMOEIRO: A MÚSICA DE TEATRO

Por Max Hebert


Que o Fernando Limoeiro é um homem de Teatro, quem conhece sabe! É quase uma redundância dizer que o cabra-da-peste pernambucano saiu do sertão pra tentar a vida no sul-maravilha e escreveu, atuou, dirigiu e ensinou Teatro para mais de uma geração.


Mas, o que pouca gente sabe é que além de homem de Teatro, Limoeiro é um homem de Música.

Trabalhei com o Limão durante sete anos na Trupe a Torto e a Direito, atuando e fazendo a direção musical desse grupo o qual fundou e é o timoneiro há mais de 20 anos, na luta pela emancipação de estratos sociais excluídos e marginalizados. E nesse tempo vi e ouvi um sujeito analfabeto musical solfejar melodias prontas e chicletes - o que era ótimo para o Teatro! Ele intuitivamente ia trazendo o ritmo, a melodia e a letra, quase tudo pronto, sobrava pra mim os arremates, as firulas e os arranjos.


Eu já era músico desde os doze anos. Mas a composição, pra mim, era algo distante e intangível. Mas, ao observar Limoeiro compondo para as esquetes, fui aprendendo que a criação artística é trabalho. Eu vinha com a técnica e o Limoeiro vinha com a alma. Ele sempre diz que “o artista é um operário que tece o lazer de outro operário”, ou como dizia Pablo Picasso, “a inspiração existe, mas ela precisa te encontrar trabalhando”. Com o Limoeiro aprendi que também podia. E ao longo de anos de trabalho, foram muitas as composições que fizemos juntos. Várias ficaram nas gavetas e existem só nas nossas cabeças, como as canções que fizemos para a adaptação do conto A Caolha, de Júlia Lopes de Almeida; e as canções para o trabalho Casulo de mímese corpórea dos Velhos; além da trilha sonora da formatura “A moça do Km 70”, sem contar as paródias. Mas que bom que a trilha do espetáculo O amor tá na rua foi toda arranjada, gravada e publicada nos streamings, com o importante empenho da professora Helena Mauro.


Quero contar um caso para ressaltar uma característica crucial do trabalho do Limoeiro. Certa vez, nós da Trupe a Torto e a Direito estávamos apresentando a peça Não sou boneca, uma das mais emociantes e necessárias pela eficácia no combate ao abuso sexual infantil, e cuja trilha sonora era executada ao vivo pela excêntrica banda Morcegos da Noite. Acontecia sempre que, ao final da peça, alguém da plateia vinha falar com os atores e músicos. Nas escolas, por exemplo, várias vezes meninas que eram violentadas sexualmente procuravam a atriz-boneca para pedir ajuda.


Um dia, um cego, que estava na platéia, veio nos parabenizar porque tinha “visto” todas as cenas e entendido tudo! Isso porque a dramaturgia de Fernando Limoeiro é marcada pela Rádio Novela. A palavra - bem dita e bem cantada - traz as imagens e a cena se desenha, e não é diferente com o musical que deu origem ao disco “O amor tá na rua” - a peça pode ser “vista” pela escuta do disco.

O Limoeiro compositor está também no disco Coisa de Louco do Dudu Nicácio com o samba homônimo, que revela uma incansável alegria e uma teimosia necessária para ser feliz. Este Mestre do Teatro e das Composições está também nas inspirações do meu primeiro disco Tem de amor e tende humor, a quem sou muito grato por ensinar que eu também podia.


Às vezes fico pensando na quantidade de Músicas para Teatro que o Fernando Limoeiro já fez com outros atores-músicos antes de mim, em todos esses anos de criação, e que só existem nas suas lembranças e nos solfejos que só irrompem quando atores e público as recordam. A Música de Teatro é tão efêmera quanto o Teatro. Por isso, talvez, nós atores somos tão nostálgicos de nossos momentos em cena. Não lembro onde li que de todas as artes, o Teatro é aquela de glória mais efêmera. A Escultura dura feito pedra; a Arquitetura atravessa dinastias; da Pintura - desbotada, conservada ou restaurada - temos exemplares milenares; a Literatura dorme nas estantes mas acorda a cada leitura; igualmente a Música e o Cinema na época da reprodutibilidade técnica, revivem a cada replay. E o Teatro e a Música ao vivo, que só existem enquanto existem e reverberam? As glórias do ator/atriz e do instrumentista duram alguns segundos, quiçá minutos, em que estamos dobrados recebendo os aplausos. Sou levado a concluir que infeliz de quem busca a glória e a fama, pois vai ficar frustrado com sua efemeridade.


Quem faz Teatro Universitário sabe do que estou falando: não é só uma Escola de Teatro, é Escola de Vida, uma família. Lembro que na primeira aula do Fernando Limoeiro ele apontou para os batentes da porta da sala e disse algo assim: “ego de ator e de atriz não entra por essa porta!”. Demorei a entender e preciso sempre me relembrar que minha arte é meu serviço. No ofício do processo de criação da Trupe ele sempre dizia: “Não vai ganhar a sua ideia, não vai ganhar a minha ideia, vai ganhar a melhor”. Fórmula secreta para se colocar à serviço de algo maior que todos nós, a Arte. Grandes aprendizados que não me saem da memória e que levo pra vida.




Foto: Max Hebert

Gosto muito dessa foto. A Trupe ganhou essa sanfona de presente de uma espectadora tocada pela apresentação. Ela queria contribuir de alguma forma com o nosso trabalho. Dispôs de seu instrumento, herança de família, convicta de que nas nossas mãos o acordeon seria mais útil que dentro do armário. Na foto, Limoeiro está muito feliz e grato com o instrumento que não sabe tocar. Mas assim é: o dramaturgo fala pela boca do ator, o compositor canta pela boca do cantor e toca pelos dedos do instrumentista.


Para escutar:

O Amor tá na rua (Trupe A Torto e a Direito)

Coisa de Louco (Dudu Nicácio e Fernando Limoeiro)

Tem de Amor e Tende Humor (Max Hebert)


 

Max Hebert é graduado em História pela UFMG; ator formado em 2013 pelo Curso Técnico do Teatro Universitário (T.U.-UFMG); músico com habilitação em saxofone pelo Conservatório Estadual de Música de Varginha-MG; acordeonista e compositor. Em 2011, estudou História do Cinema na UniversitéParis 1 - Panthéon-Sorbonne, onde também atuou nas peças “Eletronic City”, de Falk Richard, e “A Refeição”, de Newton Moreno. Fez o roteiro e atuou nos curta-metragens “Ferramentas”, “Tudo aquilo que não sou eu” e “Questões”. De 2011 a 2018, trabalhou como ator e diretor musical da Trupe A torto e a direito, do Programa Pólos de Cidadania da Faculdade de Direito-UFMG, tendo sido o trabalho mais importante o que resultou no disco com a trilha sonora do musical “O amor tá rua”. Em 2017 venceu a etapa regional do Festival da Canção Francesa da Aliança Francesa. No cinema, atuou no longa “Looking For A Heart Of Gold”, do diretor belga Rudolf Mestdagh. Atualmente, é ator e músico do Grupo Galpão Cine Horto com o projeto “Conexão Galpão”, músico em diversos projetos (Bloco Pisa na Fulô, Trio Maxixe, Mamutte, Terra de Histórias e outros) e lançou na quarentena seu primeiro disco autoral, “Tem de amor e tende humor”, já com dois clipes das duas primeiras canções.

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